'O intestino é uma máquina computacional sofisticada', diz pesquisador

Muito mais que um tubo processador de comida, o órgão tem um impacto poderoso na fisiologia e no comportamento, diz o professor da Universidade Yale que estuda o papel da inflamação na saúde e na doença

PUBLICIDADE

Por Cristiane Segatto
Atualização:

O imunologista Ruslan Medzhitov, professor da Universidade Yale, é um dos mais respeitados estudiosos do papel da inflamação na manutenção do equilíbrio fisiológico do organismo (a chamada homeostase) e também dos processos inflamatórios que contribuem para o desenvolvimento da maior parte das doenças – do câncer à depressão; dos problemas cardiovasculares às doenças intestinais e muitas outras.

PUBLICIDADE

Um dos descobridores dos receptores Toll-Like (moléculas presentes nas células de defesa responsáveis pela geração de sinais que levam à produção de citocinas pró-inflamatórias), Medzhitov é frequentemente citado por imunologistas como merecedor de um Prêmio Nobel

Em uma edição especial publicada recentemente pela revista Science, ele defendeu uma visão expandida da inflamação na saúde e na doença, tema da série de três reportagens que o Estadão publicou no sábado (5), no domingo (6) e nesta quarta (9). Em entrevista ao jornal, Medzhitov diz que o intestino é muito mais que um tubo processador de comida e tem um impacto poderoso na fisiologia e no comportamento. 

O imunologista Ruslan Medzhitov, professor da Universidade Yale, é um dos mais respeitados estudiosos do papel da inflamação na manutenção do equilíbrio fisiológico do organismo Foto: Universidade Yale/ Divulgação

Novos estudos apontam que a inflamação está associada a quase todas as doenças humanas e, também, na manutenção do equilíbrio do organismo (homeostase). De que forma essas evidências podem contribuir para a melhoria da atenção à saúde? 

Como a inflamação está associada a quase todas as doenças, é importante descobrir a causa dela em diferentes situações. Isso permitirá desenvolver terapias que previnem a inflamação indesejada que perpetua e amplifica processos patológicos. 

O senhor propõe uma visão expandida sobre o papel da inflamação no organismo. Isso pode levar à criação de medicamentos melhores? 

A maioria dos métodos para tratar as doenças inflamatórias é baseada no bloqueio da produção de sinais inflamatórios. A alternativa que sugiro é bloquear a resposta dos tecidos e órgãos-alvo aos sinais inflamatórios. Uma analogia: o que fazer quando a música alta perturba? Você pode diminuir o volume ou colocar tampões no ouvido e não se incomodar com o som. Baixar o volume é como suprimir a inflamação, um método que nem sempre funciona. Colocar tampões no ouvido é como reduzir a resposta a sinais inflamatórios. Esse método ainda não foi testado, mas acho que seria uma direção valiosa para futuras pesquisas.

Publicidade

De que forma o uso excessivo de remédios anti-inflamatórios pode prejudicar o equilíbrio fisiológico do organismo? 

O uso excessivo de anti-inflamatórios pode ter duas consequências negativas. Em primeiro lugar, pode comprometer a defesa contra infecções (e alguns tipos de tumor). Em segundo lugar, isso pode perturbar a homeostase em alguns casos. Um exemplo: estudos recentes têm demonstrado que anti-inflamatórios não-esteroides (como o ácido acetilsalicílico e o ibuprofeno) podem reduzir o efeito positivo do exercício e causar úlceras no intestino, se usados em altas doses e por longos períodos.

Como processos inflamatórios ocorridos no intestino podem impactar o cérebro e contribuir para o desenvolvimento de depressão, doenças neurodegenerativas como o Alzheimer e outras?

Isso ainda não é completamente compreendido, mas tanto a depressão quanto o Alzheimer são doenças causadas ou promovidas pela inflamação. A inflamação causa muitas formas de depressão. Provavelmente isso é parte da resposta fisiológica normal ao adoecimento. Quando estamos doentes por causa de alguma infecção, a reação normal do corpo é ficar quieto na cama, diminuir o apetite, evitar luzes e sons altos etc. 

PUBLICIDADE

Sabemos por que algumas dessas reações acontecem, mas ainda não compreendemos todas elas. A depressão é uma resposta de proteção do organismo quando ele está em risco. Provavelmente porque reduz a exploração do ambiente, mas ela se torna patológica quando é excessiva. 

No caso do Alzheimer, é diferente. O que acontece ainda não foi totalmente esclarecido. Se a doença neurodegenerativa é causada por infecção ou por micróbios intestinais, isso não está bem estabelecido. É muito difícil estudar o Alzheimer porque ele leva décadas para se desenvolver. 

O intestino costuma ser chamado de segundo cérebro. Dizer isso ainda é correto, à luz das novas evidências sobre a sinalização da inflamação entre os dois órgãos?

Publicidade

O intestino tem seu próprio sistema nervoso (sistema nervoso entérico) que, às vezes, é chamado de segundo cérebro. É correto pensar sobre ele dessa forma. O intestino é um órgão subavaliado. As pessoas acham que ele é apenas um tubo processador de comida. Na verdade, ele é uma máquina computacional sofisticada que avalia constantemente o que comemos e o que precisa ser feito. 

Ele tem um impacto poderoso em nossa fisiologia e no nosso comportamento. Da mesma forma, está envolvido na inflamação direcionada contra micróbios e na inflamação direcionada a determinados componentes dos alimentos. Quando desregulada, a primeira pode levar às doenças inflamatórias intestinais e a segunda à alergia alimentar. 

Quais são as lacunas fundamentais no conhecimento sobre a inflamação? Qual pergunta o senhor gostaria de ver respondida?

Acho que a lacuna fundamental é não conhecermos todas as formas pelas quais a inflamação pode ser induzida. Isso pode acontecer de diversas maneiras: quando não dormimos o suficiente, quando viajamos a um país estrangeiro e comemos alimentos muito diferentes, quando estamos de mau humor etc. Gostaria de descobrir quais são os temas comuns aqui e quais são os mecanismos moleculares que causam inflamação sob essas diversas condições.​

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.