O milagre brasileiro contra a covid não virá; leia análise de ex-presidente da Anvisa

Claudio Maierovitch afirma que medidas de restrição e testagem, apoio econômico, reforço das equipes de atenção primária, aceleração da vacinação e boa comunicação são essenciais para vencer o coronavírus

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Por Claudio Maierovitch
Atualização:

Não vem milagre no Brasil, não veio em parte alguma do mundo. Países que controlaram a transmissão da covid-19 têm governos que reconhecem o valor da vida e dão ouvidos à Ciência. Adotaram medidas rígidas de confinamento, como a China, a Alemanha e Portugal, ou agiram com rapidez e foco, como a Nova Zelândia e a Coreia do Sul, ou ainda implantaram estratégias velozes de vacinação ampla, como Israel, seguido, ainda de longe, pelo Reino Unido

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O milagre foi mais um dos famosos anúncios mentirosos do presidente Donald Trump, pois nos Estados Unidos os números estratosféricos de casos só começaram a cair depois de sua saída, quando o governo federal e os estaduais passaram a agir de forma coordenada e orientada por conhecimento, ao mesmo tempo em que se acelerou a vacinação.

No Brasil, enquanto se vulgarizam as cenas dantescas dos hospitais e cemitérios congestionados e destinam-se recursos para ampliar vagas e equipamentos, pouco se faz para interferir nos rumos do processo epidêmico

Com a pandemia, Hospital M Boi Mirim, em São Paulo, vira um cenário de guerra. Foto: Fernando Bizerra/EFE

Ainda é possível agir, apesar da tragédia humanitária que vivemos. Vidas perdidas marcarão nossa história e a memória dos sobreviventes, mas o futuro pode ser escrito de outra forma.

Uma reação efetiva deve acontecer em cinco frentes.

Em primeiro plano, além da cuidadosa proteção individual (máscaras e higienização), deve haver restrição rigorosa de atividades não essenciais e que ponham pessoas em contato umas com as outras. Isso inclui proibir todo tipo de aglomeração, fechar bares, restaurantes, templos religiosos, festas, escolas, boa parte do comércio varejista e restringir a circulação. O confinamento, que seria chamado lockdown, em inglês, deve ter duração mínima de duas semanas e ser repetido periodicamente.

Outra linha é de apoio econômico. Muitas pessoas precisam de suporte financeiro para manter o confinamento, em especial os desempregados e trabalhadores informais. O auxílio de R$ 600 que o governo foi obrigado a conceder precisa ser mantido enquanto a epidemia não for contida. De outro lado, empresas, em especial pequenas e médias, e as do setor de serviços só serão capazes de sobreviver e manter seus empregados se contarem com auxílio na forma de financiamento subsidiado e incentivos fiscais. 

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Como já se tornou aparente, as necessidades criadas pelo cenário epidêmico também geram novas demandas econômicas, como a produção de materiais de proteção e os serviços de entregas. É possível redirecionar alguns negócios nessa perspectiva. Esse movimento tem que ser feito de forma organizada, o que depende de planejamento e organização pelos governos.

No campo específico da saúde pública, é mandatório agir para reduzir a transmissão do SARS-CoV-2. Não se trata de conhecimento novo, só precisa ser aplicado. O trabalho de atenção primária e o de vigilância em saúde devem funcionar de forma absolutamente integrada em cada território. Isso exige fluxos ágeis para atendimento seguro, a testagem, com técnicas acuradas, de TODAS aspessoas com sintomas (mesmo leves) e daquelas que tiveram contato próximo com elas. É imprescindível orientar e monitorar o isolamento das primeiras e a quarentena dos contatos.

É fundamental reforçar imediatamente as equipes de atenção primária, com a contratação emergencial de cerca de 50 mil agentes de saúde em todo o País. Também a capacidade de diagnóstico deve ser reforçada, com a oferta de testes rápidos de pesquisa de antígeno e ampliação da capacidade laboratorial do SUS para os testes moleculares e também para vigilância virológica. Laboratórios privados e de instituições de pesquisa devem ser incorporados a esse esforço.

Ainda no campo da saúde, salta aos olhos a lentidão da campanha de vacinação. Ao lado dos extraordinários esforços do Instituto Butantan e da Fiocruz para oferecer os imunizantes, o governo federal precisa ser muito mais efetivo em sua busca por outras vacinas, negociando com cada uma das indústrias potencialmente fornecedoras, sem a ambiguidade e a hesitação que sobressaíram até agora. Do lado regulatório, a Anvisa já demonstrou que está preparada para atender a essas demandas. Caso haja vacinas em quantidade suficiente, o Programa Nacional de Imunizações será capaz de rapidamente atingir alta cobertura.

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Por fim, a comunicação. Enquanto atitudes e mensagens do governo federal continuarem a desprezar a vida, a doença e as medidas para conter a crise, vamos afundar mais no pântano. Precisamos de orientações e mensagens que demonstrem convergência entre as três esferas de governo, especialistas, profissionais de saúde e outros atores e deem respaldo às providências que não podem ser adiadas.

Como informação adicional, não custa lembrar que o País tem recursos para fazer tudo isso. Ainda que significasse endividamento, seria recuperado mais adiante, ao contrário das vidas que não voltarão nunca mais.* Claudio Maierovitch, ex-presidente da Anvisa, é médico sanitária da Fundação Oswaldo Cruz e ex-diretor de Departamento de Vigilância de Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde