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Psiquiatria e sociedade

Opinião|O que falar sobre Neymar revela de nós

Não conseguimos atribuir ao acaso a oscilação de desempenho do ser humano

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Atualização:

Quando o mesmo assunto reúne uma nação inteira dando opinião, temos uma oportunidade única. Podemos não descobrir nada sobre o assunto, mas com certeza aprenderemos bastante sobre a nação. Afinal, o que Paulo diz sobre Pedro nos fala mais sobre Paulo do que sobre Pedro. Exatamente: o que falamos sobre o Neymar revela mais sobre nós do que sobre ele.

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Revela, por exemplo, que nós não suportamos ficar sem explicações. O cérebro não suporta o acaso. Mesmo os animais que habitam o mundo há muito mais tempo do que nós e não perdem tempo filosofando atribuem causas às consequências por uma questão de sobrevivência. Se eu mordo essa fruta e sinto um embrulho no estômago, a mordida deve ser a causa, melhor procurar outro alimento. Se eu encosto nesse inseto e queimo minha pata, o bicho ganha imediatamente status de perigoso. Sem essa associação imediata entre causa e consequência provavelmente a vida estaria ameaçada.

Mas como outras características originais de fábrica que trazemos embutidas em nossas cabeças, essa também nos engana bastante quando saímos do imediatismo e da simplicidade da luta pela sobrevivência no estado de natureza e passamos para a complexidade da vida moderna. É só chegar o inverno e as pessoas começarem a ficar gripadas para acreditarmos que a friagem nos adoece. Outro exemplo curioso é o medo que os mais velhos têm do reflexo de luz dos espelhos – “vai ficar com a cara torta, menino”.

Pois antigamente, quando os espelhos eram caros e raros, provavelmente muitas pessoas andavam por aí com a expressão alterada por paralisias faciais sem se dar conta disso. Só quando se deparavam com um espelho, quase que por acaso, descobriam como estava seu rosto – e era o que bastava para atribuir ao reflexo o defeito facial.

É inevitável. Se o Neymar não joga bem, nós imediatamente passamos a buscar – e encontrar, veja só – explicações das mais diversas. Ele é mimado. Quem já é rico não tem motivação.

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É o problema da malandragem latina. É a Bruna Marquezine. É a Rede Globo. Não conseguimos atribuir ao acaso, que faz com que o desempenho de qualquer ser humano, em qualquer atividade, oscile em torno de uma média. Claro que a média dos incompetentes é inferior à média dos geniais, mas a oscilação é inevitável. Cobrar regularidade de um atleta é como querer que um dado consistentemente nos dê apenas cinco ou seis.

Essa, aliás, é a crueldade da Copa do Mundo. Imaginemos um time de alto desempenho, com histórico de 60% de vitórias, 30% de empates e só 10% de derrotas. Seria um dos melhores do mundo e ainda assim teria grande chance de ser eliminado em uma disputa de jogos únicos. Basta não ter sorte.

Se formos sinceros e frios em nossa análise, descobriremos que não existe campeão sem sorte. Em qualquer área, dos esportes ao mercado financeiro, seja no jogo ou no amor, sem ajuda do acaso não há mérito que sozinho leve ao pódio. Claro que com esforço qualquer um pode ter sucesso – desde que adotemos uma definição ampla de sucesso, como alcançar melhora significativa em alguns aspectos da vida.

Mas, se é um grande sucesso, como conseguir aquela posição específica em uma disputa acirrada, só mesmo com a ajuda da sorte – não se emplaca uma música entre as mais tocadas, não se é promovido a presidente da empresa e não se avança para a fase eliminatória em uma Copa do Mundo sem um empurrão aleatório.

Nossa bronca com o Neymar, e de resto com a seleção brasileira, entre outras coisas revela sobre nós que não toleramos o acaso. Grandes sucessos dependem de sorte e mérito, mas como preferimos ignorar a sorte, quando alguém não obtém tais sucessos acreditamos que lhe falta o mérito. Não é justo.

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Alemanha

Depois do 7 x 1 não faltaram explicações para o sucesso dos alemães. Era resultado de um planejamento de longo prazo, desde as categorias de base, envolvendo investimentos em estrutura, preparo físico e psicológico com objetivo de dominar o futebol. A eliminação da Alemanha mostra que ou os alemães fizeram isso só para provar que eram capazes de ganhar uma vez e abandonaram tudo, ou as explicações não são insuficientes apenas para explicar derrotas.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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