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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Piadas (i)morais

Imagina vídeos satirizando um ator trôpego pelas ruas, fraco em razão de um câncer?

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Atualização:

Hoje precisarei da ajuda dos leitores. Estou às voltas com a avaliação de duas pessoas que não têm ido trabalhar, não têm cumprido suas obrigações domésticas, têm feito da vida – suas e dos outros – uma bagunça. No entanto, elas afirmam que tudo isso está acontecendo por causa de uma doença. Há alguns anos elas vêm apresentando sintomas diversos, interferindo a capacidade de decisão, prejudicando o autocontrole, desviando toda a energia. Daí a incapacidade para o trabalho, as brigas familiares, o prejuízo social.

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Cabe a mim – a nós, agora – decidir se de fato elas estão incapacitadas pela doença ou não. Se sim, poderemos conceder-lhes o benefício de um afastamento, por exemplo.

E então? Ah, só um detalhe. Elas não têm o mesmo diagnóstico. Uma delas sofre de depressão. Isso acabou com sua energia, ela se sente incapaz de reagir. Por mais que tente, não consegue organizar seu dia a dia, pois só chora, não dá conta de cuidar de casa, mal sai do sofá. Não tem sequer tomado banho todo dia, abandona os filhos para se trancar no quarto. E o pior, não consegue se tratar direito – sempre falta às consultas, dizendo-se sem forças. Podemos justificar suas faltas ao trabalho e pagar o auxílio-doença?

A outra pessoa? Ela cheira cocaína. Às vezes só um pouco, mas frequentemente usa mais do que gostaria. Sente-se incapaz de reagir. Por mais que tente, não consegue organizar sua rotina, pois está sempre intoxicada, não dá conta de cuidar da casa. Não tem sequer tomado banho todo dia, abandona os filhos para cheirar cocaína. E o pior: não consegue se tratar direito – sempre falta às consultas, dizendo não ter forças. Podemos justificar suas faltas ao trabalho e pagar auxílio-doença?

Para quem daremos o benefício? Ambas? Nenhuma? Ou acreditamos que a pessoa com depressão faz jus ao afastamento, mas a que usa cocaína, não? Muitos sentirão um impulso de seguir a última opção. Afinal a depressão hoje é bem compreendida como doença enquanto a dependência química carrega um forte conteúdo moral. 

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É quase inevitável pensar na pessoa deixando de cuidar dos filhos para cheirar cocaína sem julgá-la. O trabalho do perito – função que divido com os leitores – é ir além desse impulso. É lembrar que a dependência química é um problema de saúde como os outros – tem o mesmo status de AVC ou fratura exposta – e dar-lhe a mesma avaliação objetiva. Mas pode ser difícil retirar essa camada de condenação.

Talvez esse exercício nos ajude a entender um pouco melhor o recente caso do ator Fabio Assunção. Para quem não acompanhou, uma banda lançou uma música com o nome do ator exaltando a embriaguez. “Hoje vou beber, hoje eu vou ficar loucão (...) Hoje vou virar o Fabio Assunção”, diz a letra. Os compositores não criaram essa imagem do ator, mas aproveitaram-se da onda de memes e piadas o envolvendo.

Mas pergunto: você consegue imaginar vídeos satirizando um ator andando trôpego pelas ruas por estar fraco em razão de um câncer? Máscaras de carnaval tripudiando da calvície causada pela quimioterapia? Então, por que fazemos isso com a dependência química? Porque, no fundo, culpamos a pessoa. Achamos que ela merece ser exposta e humilhada. Afinal, ela é responsável por seu estado lamentável. Como tendemos a negar o benefício para o dependente.

Assunção conseguiu reverter a situação com extrema habilidade. Em vez de processar a banda ou tentar censurar a canção, fez um acordo com os músicos e toda a renda de direitos autorais será doada para instituições que tratam de dependência. Com isso, trouxe para primeiro plano a seriedade do tema e ainda constrangeu os compositores a mudarem a letra sem apelar para via judicial. Tornou-se impossível manter a música incitando o abuso de álcool.

Esse não foi um caso isolado. O documentário vencedor do Oscar de 2016, Amy, mostrou como a dependência que levou à morte a cantora Amy Winehouse em 2011 foi tema de muita piada na mídia antes que se percebesse a gravidade do problema. O erro é recorrente. Será que um dia aprenderemos a lição?

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* É PSIQUIATRA

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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