Pioneira na luta antiaids, Lu dá à luz a bebê sem o vírus

Luciane, agora com 20 anos, foi a primeira criança a receber o coquetel e a ganhar indenização do Estado

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Por José Maria Tomazela
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Quando teve a certeza da gravidez, Luciane Aparecida Conceição, apelidada de Lu pelos parentes e amigos, então com 19 anos, torceu para que o bebê fosse menina e pudesse batizá-la Vitória. Deu certo. No final da tarde de terça-feira, Luciane, soropositiva desde o nascimento, deu à luz uma filha que representa uma vitória contra a aids. Lu contaminou-se ao nascer - sua mãe adquirira o vírus numa transfusão de sangue durante a gravidez - e foi a primeira criança no mundo a receber o coquetel contra a aids quando ainda pouco se sabia sobre a doença. Na época, ela precisou de uma autorização especial da Justiça. A recém-nascida é, portanto, neta de uma soropositiva, mas não tem o vírus. O bebê nasceu de cesariana na maternidade do Conjunto Hospitalar de Sorocaba (CHS) e, embora ainda faltem exames para reforçar a certeza, a verificação preliminar indica que é sadio. Ana Vitória - o primeiro nome foi acrescentado pelo pai, o pedreiro Daniel Ribeiro Martins, de 29 anos - nasceu com 3,040 kg e muito cabelo. "Deus nos atendeu e ela veio perfeita. Estamos muito felizes." Casos de bebês de mães soropositivas que nascem sem o vírus já se tornam comuns, segundo a Secretaria da Saúde do Estado. Mas o nascimento de Ana Vitória vai se tornar um marco, segundo a médica Rosana Paiva dos Anjos, infectologista da secretaria, que acompanha o caso. Além de o bebê ter nascido sem o vírus, o pai não se contaminou durante o relacionamento com a mãe que resultou na gravidez. Ela ressalta que a mãe, embora apresente carga viral zero, não está curada, mas controlada. "Ela continua recebendo o coquetel e, se parar, pode voltar a apresentar o vírus e os sintomas." A filha, porém, deverá ser uma criança normal. Como é a transmissão vertical  do vírus e a prevenção:  "Esperamos que ela possa crescer, estudar, se relacionar, ter filhos, enfim, viver sem a mesma preocupação da mãe ou temendo o destino da avó." A mãe de Luciane adquiriu o HIV no oitavo mês de gravidez, em 1987. Por um erro do hospital - o mesmo onde agora Ana Vitória nasceu sadia -, ela recebeu uma transfusão com sangue contaminado. A mãe logo apresentou sintomas da doença e morreu. A criança também foi contaminada. Rejeitada pela mãe, que acabou morrendo de aids, Lu morou um ano no hospital, até ser adotada pelo casal Edgar e Arlinda Conceição. Há pouco mais de um mês, a Vara da Fazenda Pública de Sorocaba reconheceu o erro do hospital e condenou o Estado a pagar indenização de mil salários mínimos (R$ 380 mil) a Luciane e valor igual a sua mãe biológica. Como a mãe já morreu, a quantia será dividida com os três irmãos de Luciane. A Procuradoria do Estado recorreu e o processo, iniciado em 1989, aguarda decisão do Tribunal de Justiça. Luciane recebe ainda uma pensão de 5 salários mínimos, concedida em 1992, em decisão até então inédita. Criada pelos pais adotivos, Lu era uma criança doente. Aos 8 anos, contraíra tuberculose e pneumonia, apresentava lesões cutâneas e queda de cabelo. Como não andava e tinha dificuldade para falar, teve de abandonar a escola. A infectologista Rosana Maria Paiva dos Anjos, coordenadora da equipe antiaids do próprio hospital, iniciou uma corrida contra o tempo. Ela conta que precisou recorrer à Justiça para poder ministrar o coquetel. O juiz que autorizou disse que se tratava de "um caso extremo". Na época, as drogas não tinham sido testadas em crianças. Graças ao uso diário do coquetel, a quantidade de vírus no sangue começou a cair. Luciane pôde freqüentar a escola e passou a levar uma vida normal. O caso abriu precedente para que milhares de crianças passassem a ser medicadas. Há dois anos, Luciane começou a namorar o pedreiro Daniel, seu vizinho. Ele já conhecia o drama da garota e não se intimidou. "Ela sempre foi bonita e alegre. Eu me apaixonei." Desde o início do ano passado, eles moram juntos. Ele acompanhava a mulher no médico e tinha informações sobre o caso. Desde 1996, os exames mostravam que a carga viral estava zerada. "Eu queria ter um filho, mas ela tinha receio. A gente sempre usou camisinha. Um dia, pensei: ‘seja feita a vontade de Deus’ e parei de usar." O infectologista Caio Rosenthal, do Instituto Emílio Ribas, diz que pacientes com carga viral abaixo dos níveis de detecção têm chances muito pequenas de transmitir o vírus ao parceiro, já que há pouca quantidade dele no sangue, no líquido seminal e nas secreções vaginais. "Quem não quiser correr risco, pode optar por técnicas de reprodução assistida, que detectam se o embrião está contaminado." Gestantes com carga viral baixa tomando anti-retrovirais e seguindo recomendações têm 97% de chances de gerar um filho sem o vírus. Quando a gravidez de Luciane foi confirmada, o casal enfrentou críticas até de parentes. A médica Rosana lembra que, por precaução, não se recomenda a gravidez nesses casos, mas eles estavam conscientes dos riscos. O pré-natal passou a ser feito no Conjunto Hospitalar, que desenvolve um bem-sucedido programa de controle da transmissão vertical da aids patrocinado pelo Ministério da Saúde. Havia até previsão de parto normal, mas optou-se pela cesariana por causa da compleição franzina da mãe e do tamanho do bebê. Por precaução, Ana Vitória não está sendo amamentada por Lu. O bebê deve ter alta hoje. Amigos do casal prepararam um pequeno enxoval. "Quero curtir muito minha filhinha", diz Luciane.

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