Por dentro da sala de cirurgia: parceria de Einstein e SUS ajuda a desafogar fila de bariátricas

Reportagem acompanhou como foi o centésimo procedimento do tipo, realizado no Hospital Municipal Vila Santa Catarina

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Por Cristiane Segatto
Atualização:

A interrupção das cirurgias eletivas, medida necessária nos piores meses da pandemia, afetou duplamente as pessoas que sofrem de obesidade grave. Além de não conseguir passar por uma redução de estômago planejada há tempos, muitas viram o ponteiro da balança subir ainda mais durante o isolamento social – situação que favoreceu a inatividade física, a alimentação hipercalórica, o estresse e a ansiedade.

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O aumento da demanda por cirurgias bariátricas no Brasil era previsível. Para tentar desafogar a fila de espera e evitar o agravamento da condição de saúde dos doentes, o Hospital Municipal Vila Santa Catarina, na zona sul de São Paulo, criou um programa de obesidade há um ano. A iniciativa nasceu da preocupaçãodo secretário municipal de saúde de São Paulo, Edson Aparecido, e do médico Sidney Klajner, presidente do Hospital Israelita Albert Einstein, que gerencia a instituição pública por meio de convênio com a Prefeitura.

A centésima cirurgia, acompanhada pelo Estadão, foi realizada pelo próprio Klajner na última quinta-feira de outubro. A auxiliar de limpeza Viviane Matos, 37 anos, internou-se na véspera. Saiu com dificuldade do Uber, pelo vão entre a porta e o banco do passageiro. Constrangimento de quem conhece as dificuldades e os riscos de um IMC 42, grau que caracteriza a obesidade mórbida.

Reportagem acompanhou a 100ª cirurgia bariátrica no Hospital Municipal Vila Santa Catarina, realizada peloo médico Sidney Klajner, presidente do Einstein Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO

Viviane caminhou em direção à recepção com passos lentos e dolorosos, mas visivelmente feliz. Depois de sucessivos e frustrados tratamentos para emagrecer, finalmente conseguiu vaga para realizar o procedimento pelo SUS. "Meu sonho é ser saudável; dormir e levantar sem dor", disse ela ao explicar sua expectativa em relação ao resultado (leia o depoimento aqui).

O encontro entre o médico do Morumbi e a faxineira do Capão Redondo aconteceu só na sala de cirurgia, quando Viviane já havia sido anestesiada. "O elemento estranho aqui hoje sou eu; minha equipe cirúrgica trabalha nos dois hospitais", disse Klajner. "É um orgulho operar a centésima paciente de um programa que funciona em tempo recorde, sem nenhum caso de complicação", afirmou. "Em São Paulo, os doentes esperam cerca de três anos no SUS antes de conseguir chegar até aqui."

A técnica escolhida foi a gastrectomia vertical, feita por laparoscopia. Com os olhos fixos no monitor de vídeo, Klajner manejava pinças cirúrgicas introduzidas em pequenos orifícios abertos no abdome. No início, fez a dissecção de uma porção de gordura na transição entre o esôfago e o estômago. O objetivo era enxergar melhor a área em que seria feito um grampeamento para delimitar a parte do estômago a ser extraída.

Graças à eletrocauterização, espécie de selagem dos vasos, não se via sangue durante o procedimento. "Na primeira cirurgia que acompanhei, ainda no início da faculdade, não existia vídeo. Desmaiei logo que fizeram a incisão da artéria", contou Klajner.

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Depois que um molde desceu pelo esôfago de Viviane e chegou ao estômago, Klajner acionou o gatilho de uma lâmina. Estava feito o corte. A parte extraída do órgão foi retirada por uma mínima abertura no umbigo. Para quem nunca viu, parece mágica.

O procedimento completo durou cerca de 50 minutos. O novo estômago ficou com volume de 110 ml, forma que inibe a ingestão excessiva de alimentos e exige readaptação alimentar. O objetivo não é apenas reduzir o tamanho do órgão. Quem é submetido a ela deixa de ter 90% da produção de alguns hormônios que induzem o aumento do apetite.

Nos próximos dois anos, Viviane seguirá em acompanhamento no hospital. Segundo Klajner, a cirurgia vai tirá-la do estado inflamatório que provoca suas dores constantes e incentivar o autocuidado. "Nada supera a satisfação de trazer a saúde de volta. Isso aqui é a minha terapia", afirmou ele, antes de deixar a sala.

'Meu sonho é ser saudável; dormir e levantar sem dor', conta a auxiliar de limpeza Viviane Fernandes Matos, de 37 anos Foto: DANIEL TEIXEIRA/ ESTADÃO

Não é para todos

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A cirurgia de obesidade é um recurso para evitar complicações que podem ser fatais, como insuficiência cardíaca, hipertensão, diabetes, câncer etc. Nem todos os obesos, porém, devem ser tratados dessa forma. Segundo determinação do Conselho Federal de Medicina (CFM), a cirurgia é indicada nas seguintes situações: IMC acima de 40, com doença associada ou não; IMC entre 35 e 40 e comorbidade associada (hipertensão, diabetes, apneia do sono etc); diabéticos com IMC acima de 30.

A preparação dos candidatos deve ser rigorosa. No caso da capital paulista, a central de regulação de vagas encaminha ao Vila Santa Catarina os pacientes acompanhados nas unidades básicas de saúde (UBS). "Chegam com pelo menos dois anos de seguimento e avaliação psicológica para atestar que estão aptos a passar por uma cirurgia bariátrica", diz Fabiana Rolla, diretora médica do Hospital Vila Santa Catarina.

No hospital, seguem uma nova fase de consultas e tratamento com nutricionista, psicólogo, endocrinologista, fisioterapeuta etc. Muitos precisam perder peso antes da cirurgia – o que leva tempo. A cada mês, trinta novos doentes são admitidos no programa. Hoje, há cerca de 360 em acompanhamento – 100 já operados.

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"Além de oferecer todos os cuidados antes e depois da operação, recebemos também pessoas com IMC acima de 50, público que nem todo serviço de cirurgia atende", diz Fabiana. "O paciente superobeso tem uma vida restrita e hábitos alimentares ruins. A pandemia fez com que todos os gatilhos da obesidade fossem ativados. Houve um ganho de peso generalizado na população, o que também aconteceu com quem já era obeso", diz ela. 

Um problema nacional

A dificuldade de acesso a bariátricas é um problema nacional. Em 2019, foram 12.568 procedimentos desse tipo no SUS. Em 2020, houve apenas 3.772 – queda de quase 70% em um ano. Até julho de 2021, foram registradas apenas 990 operações de obesidade no sistema público, segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica.

"Menos de mil cirurgias realizadas no SUS no 1º semestre é muito pouco. A quantidade de procedimentos que fazíamos em 2019 já era insuficiente para atender à demanda", diz o médico Fabio Viegas, presidente da entidade.

Em 2020, houve queda de quase 70% nas cirurgias bariátricas Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO

O médico destaca outro entrave: a falta de informação sobre o tamanho das filas. "Ninguém sabe quantas pessoas esperam por cirurgia bariátrica no Brasil porque há dificuldade de acesso aos dados dos Estados e municípios. O ideal seria que existisse um programa nacional de enfrentamento dessa doença em seus diferentes níveis", afirma.

Procurada pelo Estadão, a Secretaria Estadual de Saúde disse que a demanda é descentralizada na rede primária e não informou quantas pessoas estão inscritas na central de regulação de vagas, à espera de cirurgia de obesidade. Em nota, a secretaria da capital afirma que acompanha 25 pessoas por meio de consultas e exames pré-operatórios. 

Em julho, o Ministério da Saúde classificou a bariátrica como um dos procedimentos eletivos essenciais que deveriam ser retomados em até três meses. No texto das Diretrizes da Atenção Especializada no Contexto da Pandemia de Covid-19, a pasta afirma que cada hospital e serviço de saúde deve instituir um plano para reduzir os adiamentos e cancelamentos.

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Não se fala em cura para a obesidade, mas essa doença metabólica pode ser controlada. Segundo Viegas, uma redução de 10 pontos no IMC é suficiente para livrar do risco de morte precoce. "O excesso de peso é um problema de saúde; não questão estética", diz. "Precisamos lutar contra a gordofobia, mas não podemos deixar de lutar contra a obesidade."

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