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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Quando a ignorância vira elogio, quem perde é a sociedade

A dificuldade de se aprofundar, a falta de capacidade de raciocinar deixou de ser motivo de embaraço

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Foto do author Daniel Martins de Barros
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Há os que não aceitam serem chamados de ladrões, mas não se importam de ter sua coragem questionada. Outros partem para briga se lhes acusam de incompetentes, mas pouco se lhes dá serem chamados de avarentos. Só uma coisa sempre unificou os seres humanos: ninguém tolerava ser xingado de burro. Era muito embaraçoso não nos atribuírem a única coisa que (supostamente) temos a mais do que os outros seres vivos. Ser considerado burro roubava um pouco de nossa própria identidade e ainda nos alienava do grupo.

Não sei se hoje em dia isso ainda acontece. Em algum momento a inabilidade de compreender as coisas, a dificuldade de se aprofundar nos temas, a falta de capacidade de raciocinar de forma complexa deixou de ser motivo de embaraço. Aos poucos, as pessoas passaram a se constranger cada vez menos com as próprias limitações. Já não era mais um problema ser chamado de tolo. Até que se tornou motivo de orgulho.

Quando a superficialidade se torna moeda corrente no debate público, a profundidade torna-se um estorvo Foto: Pixabay.com

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Dizer “Eu não entendo nada disso que você está falando” não depõe mais contra quem não entende; antes, é uma acusação contra quem está falando difícil demais para o cidadão compreender. Quando a superficialidade se torna moeda corrente no debate público, a profundidade torna-se um estorvo para quem quer rapidamente passar ao próximo tópico.

A valorização da estultice é compreensível, por outro lado. Qualquer tema que queiramos discutir – de racismo a gordura trans, de energia solar a linguagem neutra – será complexo e difícil para nós que somos leigos na maioria dos assuntos. É preciso investir tempo e energia para alcançar uma profundidade mínima, que nos capacite a dar uma opinião embasada. 

Mas não quando a tolice se torna o padrão. A vida fica muito mais fácil quando podemos dizer “eu não entendo e não me importo” –, pois isso liberta da obrigação de pensar, o que dá um tremendo trabalho.

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E mais ainda: livra-nos do pavor que temos de sermos considerados pouco espertos. É um alívio. Aquele temor primitivo de não nos encaixarmos na grande tribo dos humanos inteligentes perde sua força quando alguém diz “pode ser burro”.

Já faz um tempo que venho notando esse elogio da ignorância, mas a morte do Jô Soares me fez pensar novamente nisso. A inteligência era uma de suas características mais valorizadas pelo público. Hoje é preciso fazer esforço para encontrar figuras de destaque que admiremos por isso.

As consequências são desastrosas, com cada vez mais gente pautando suas vidas em decisões sem qualquer embasamento além de uma opinião rasteira. A solução é esperar os prejuízos se acumularem até o ponto em que a sociedade perceberá a falta que a inteligência faz. Isso se tiver sobrado alguma.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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