Quebra de patente não traz mais vacina e afasta empresas do exterior, dizem farmacêuticas e juristas

Especialistas e entidades apontam riscos de insegurança jurídica com projeto de lei aprovado pelo Senado; mudança pode inviabilizar novos acordos de transferência de tecnologia, como os do Butantan e da Fiocruz 

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Foto do author Fabiana Cambricoli
Foto do author João Ker
Por Fabiana Cambricoli e João Ker
Atualização:

A eventual aprovação e sanção do projeto de lei que quebra as patentes de vacinas e medicamentos contra covid-19 não trará benefícios imediatos ao Brasil na oferta desses produtos e ainda poderá afastar laboratórios estrangeiros de firmarem contratos e acordos de transferência de tecnologia com o País, segundo dirigentes da indústria farmacêutica e especialistas em propriedade intelectual ouvidos pelo Estadão. Texto sobre o assunto foi aprovado nesta semana no Senado, mas não deve avançar na Câmara

Funcionário inspeciona produção da Coronavac no Instituto Butanta Foto: REUTERS/Amanda Perobell

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A medida seria inócua, dizem, porque o processo para repassar a tecnologia de um produto novo, sobretudo de vacinas que usam plataformas novas, é demorado (ao menos 12 a 18 meses). O trâmite no Brasil seria ainda mais moroso porque não há plantas já preparadas para iniciar a produção.

“O Instituto Butantan está investindo em uma nova fábrica para produzir integralmente a Coronavac e vai levar um ano. Isso porque estamos falando de uma tecnologia que eles dominam (vacina inativada). Imagine uma vacina de RNA, que é mais complexa”, diz Nelson Mussolini, presidente executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma).

Para Elizabeth de Carvalhaes, presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), o projeto de lei “olha para o lado errado” ao tentar resolver o problema da escassez de doses com a quebra de patente. “Os medicamentos do kit intubação, por exemplo, não são patenteados e ficaram em falta em todo o País. O problema não é de patente, é de suprimento”, afirma.

Ela diz ainda que vacinas que são inteiramente importadas, como as da Pfizer, nem têm patente no Brasil e, por isso, não seriam afetadas pela norma.

Mussolini afirma que, além de não ajudar, a lei poderá inviabilizar novos acordos de transferência de tecnologia, como os que já foram feitos entre AstraZeneca e Fiocruz para produção da vacina Covishield e entre Butantan e Sinovac para a fabricação da Coronavac. “Empresas que estariam dispostas a fazer acordos vão pensar se vale a pena entrar em um País que não respeita a propriedade intelectual. Não adianta ser um baita mercado e não dar segurança jurídica”, diz o executivo do Sindusfarma.

Para a representante da Interfarma, que representa as principais multinacionais produtoras de vacina, a entrega das doses já compradas pelo governo brasileiro será honrada, mas novos contratos e parcerias podem ficar ameaçados. “No caso das nossas associadas (AstraZeneca, Pfizer e Janssen), os contratos serão cumpridos. Mas a lei pode desencorajar empresas que decidissem fornecer para o Brasil”, diz.

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Brasil pode usar normas que já estão vigentes, diz professora da USP

Eles destacam que já existe norma que determina a quebra de patente. A prática é prevista nas regras do Trips (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), da Organização Mundial do Comércio, desde que seja mantido um pagamento para o dono original da patente. Para Maristela Basso, professora de Direito Internacional da USP e sócia do escritório Nelson Wilians Advogados, o Brasil poderia usar a legislação já vigente sem recorrer a “mudanças abruptas e irresponsáveis”.

“É sabido que o País (como o resto do mundo) enfrenta os efeitos nefastos da pandemia, os quais justificam discussões responsáveis sobre o tema das patentes farmacêuticas. Contudo, a resposta e os caminhos que se apresentam passam longe do licenciamento compulsório sem a autorização dos titulares dos direitos patenteários”, afirma, avaliando a medida como uma “perigosa estratégia jurídico-oportunista”.

Maristela concorda que, caso seja aprovada, a medida pode criar insegurança em laboratórios estrangeiros e até na negociação do Brasil com outros países. “Quem vai investir no País onde os bens intangíveis estão suscetíveis a uma mão pesada do legislativo, que pode mudar a qualquer momento? É bem grave”, avalia.

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Para Leonardo Bertolazzi, advogado especialista em Propriedade Intelectual, não há garantias de que a lei realmente vai trazer maior facilidade de acesso a medicamentos e vacinas. “Se tivéssemos acesso fácil a insumos ou a formação de uma força-tarefa da anvisa, seria ótimo. Mas apenas quebrar a patente, para empresas de qualidade de nível A a E produzirem, pode gerar até impacto negativo ao governo e à saúde da população”, aponta.

Já para Mérces da Silva Nunes, advogada especializada em Direito Médico e sócia do escritório Silva Nunes, a medida visa a priorizar a vida dos brasileiros sobre o lucro das empresas farmacêuticas. “Não é algo que dura para sempre, é temporário, apenas enquanto estivermos nessa emergência. No fundo, é uma questão comercial para a farmacêutica, não para nós. Entre privilegiar e proteger os direitos de propriedade intelectual e garantir que milhares de vidas sejam poupadas, o peso da vida derruba a balança.”

Pfizer e AstraZeneca não quiseram comentar o projeto. Butantan e Fiocruz não responderam.

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