Relatos da quarentena (5): Entre o céu e a terra

'Enquanto a minha mãe me espera no fim da rota desse ônibus, outra mãe acaba de virar mais um número nas estatísticas dos jornais mundo afora', escreve Caleb Guerra, estudante de Literatura que estava em quarentena na base aérea em Anápolis

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Por Caleb Guerra
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SÃO PAULO - O Estado iniciou há duas semanas a publicação de uma série de relatos escritos por Caleb Guerra, de 28 anos, estudante de Literatura que morava em Wuhan. Ele está entre os 34 brasileiros repatriados da província, área mais afetada pela epidemia de coronavírus na China. Guerra aceitou escrever um diário com suas impressões sobre a quarentena na Base Aérea em Anápolis, em Goiás, e abaixo está seu quinto texto na série, o primeiro escrito após sua liberação. 

Caleb Guerra, de 28 anos, é um dos 34 brasileiros repatriadosde Wuhan e está cumprindo quarentena em Anápólis Foto: Caleb Guerra/Arquivo pessoal

A quarentena acabou. São duas horas da manhã do dia 25 de fevereiro e estou no ônibus, que saiu da rodoviária Barra Funda em direção ao interior de São Paulo, onde vivem os meus pais. 

Paramos em um posto na beira da estrada. Depois de comer um lanche em pé no balcão, compro um copo de café e sento de frente para o ônibus, esperando dar o horário da saída. Tiro meu celular da mochila, conecto com o sinal fraco da lanchonete e recebo uma mensagem direto da China, vinda em um um grupo de amigos. 

“Pessoal, mais uma mãe nos deixou”, escreve uma amiga, enquanto envia uma imagem da conversa que teve com um dos nossos colegas de universidade. Ela não diz muito, mas pede que lembremos do seu colega em nossas orações, pois a morte encontrou mais um perto de nós. As reações do grupo variam, mas todas transmitem uma compaixão profunda pela dor da família que ficou. “Mais uma mãe nos deixou”. Poucas letras para uma frase que cria um mundo de emoções dentro da gente. Enquanto a minha mãe me espera no fim da rota desse ônibus, outra mãe acaba de virar mais um número nas estatísticas dos jornais mundo afora.

Eu não a conhecia bem, mas já compartilhamos da mesma mesa de celebração no casamento de amigos que tínhamos em comum no ano passado. No fim das contas, as mortes causadas pelo vírus não estão tão distantes de nós assim. Na verdade, vindas junto com o vírus ou por qualquer outra razão, a morte nunca está tão longe de nós e uma hora ou outra vai acabar sentando ao nosso lado, nos convidando a chorar com a perda de alguém que amamos.

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Na cultura taoísta chinesa, morte é um movimento em direção à transformação. A natureza do universo vem da mesma ordem constante que causa o revezamento entre dia e noite. A vinda do inverno enquanto o verão começa a ir embora vem da lei eterna que circula para sempre transformando o “Ying” e o “Yang” em forma material, dando a possibilidade de vida e de transformação a todos os seres vivos. 

Vida é a dádiva outorgada à nós de poder seguir sendo transformados eternamente. Morte, nesse sentido, é um dos muitos processos de transformação pelo qual passamos. A vida sempre continua, mas de uma perspectiva diferente.

O filósofo Chuang-Tzu um dia estava sonhando que era uma borboleta livre para voar sobre os campos e flores sem preocupações nem dores, e em outro dia assistia à mulher que amava adoecer aos poucos até não conseguir levantar mais da cama. E após sua morte, Hui-Shi, um antigo amigo, veio prestar condolências ao companheiro.

Ao chegar, o encontrou sentado no chão, cantando enquanto usava um pote como instrumento de percussão. Escandalizado, ele pressiona Chuang-Tzu. “Você viveu com sua esposa a vida inteira. A mulher que te ajudou a criar seus filhos acaba de morrer de velhice e fraqueza, Se você não sofre nem chora pela sua morte, que seja, porém ficar cantando e tocando já é demais!”. 

Então, a resposta de Chuang-Tzu. “Não mesmo! Como poderia não sofrer com a morte da minha esposa? É claro que sofri e chorei quando ela partiu. No entanto, lembrei-me de que quando ela ainda não existia, uma transformação na própria vitalidade do universo deu forma à ela criando seu corpo; a forma do seu corpo possibilitou sua vida por aqui; e a vida que viveu nessas terras se transformou agora em morte. 

Vida e morte são como o movimento das estações do ano, apenas passagens no eterno processo de transformação em que todos nos encontramos. Entre o céu e a terra repousa agora minha esposa, serena e tranquila. E enquanto eu chorava a seu lado, percebi que o sofrimento me impedia de entender a ordem dos céus. Então, parei de chorar."

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Morte não é o fim, é um movimento em direção à transformação. Enquanto Maria chorava do lado de fora do túmulo de Jesus, um anjo lhe perguntou. "Mulher, por que choras?". Todo ser que transita nas fronteiras do mundo visível com o universo invisível entende que na morte há uma das maiores oportunidades que o ser humano tem de entender o real sentido da vida.

Meu ônibus vai continuar viagem. Levanto, coloco a mochila nas costas e penso em aproveitar o sinal de internet fraco da lanchonete para mandar uma mensagem ao colega que perdeu a mãe. “Entre o céu e a terra agora ela repousa serena e tranquila”, escrevo. “Não podemos permitir que a morte tenha a última palavra”. Subo no ônibus. A esperança nunca morre. 

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