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Saiba como funciona uma sessão de terapia comunitária

Convênio vai destinar mais de R$ 2 milhões para a formação de 1,1 mil terapeutas comunitários no País

Por Emilio Sant'Anna
Atualização:

Um após o outro, moradores dão seus depoimentos. Desfiam histórias de angústia, depressão, violência e solidão. Alguns não falam nada, estão ali só para ouvir. Outros falam sem parar, estão ali só para serem ouvidos. Vez por outra, a sessão é interrompida pelo terapeuta para que alguém possa chorar. Dali sairá uma história que será debatida entre todos e, no final da sessão, alguém mais aliviado. A experiência batizada de Terapia Comunitária - criada em 1987 numa favela de Fortaleza - se repete cotidianamente por todo o País e, a partir deste ano, fará parte do Programa Saúde da Família (PSF), do Ministério da Saúde.   Um convênio firmado com a Fundação Cearense de Pesquisa e Cultura, destinará mais de R$ 2 milhões para a formação de 1,1 mil terapeutas comunitários, com ênfase em profissionais como os agentes de saúde. O treinamento será feito em centros de capacitação espalhados pelo País. "O objetivo é conseguir uma aproximação ainda maior da comunidade", diz a representante do departamento de Atenção Básica do ministério, Carmem di Simoni.   Em Itanhaém, litoral sul de São Paulo, cerca de 40 pessoas reúnem-se todas as segundas-feiras no salão paroquial da Igreja de Suarão. Algumas ali afirmam já sentir a melhora promovida pelos encontros semanais, outras, como a aposentada Dulcinéia Nicácio dos Santos, de 49 anos, chegam pela primeira vez, ainda desconfiadas. Dificilmente ela teria ido até lá não fosse o agente comunitário Marcelo da Silva Rodrigues ter ficado sabendo de seu histórico de violência familiar e da depressão que enfrenta.   Por três vezes, seu marido tentou matá-la, uma delas dentro do hospital onde estava internada após a agressão. Quando voltou para casa, nova agressão, o marido tentou atear fogo em Dulcinéia. Resultado: um profundo estado de depressão e solidão.   Sua história não foi a escolhida para ser debatida nesse dia, mas Dulcinéia foi pra casa mais aliviada com o acolhimento que encontrou ali. "Achei que iria chegar aqui e só conseguiria chorar, mas acabei me sentindo melhor do que quando cheguei", garante.   Como nasceu a terapia comunitária   A população da favela do Pirambú precisava mais do que um médico e remédios, precisava ser ouvida. Em 1987, a violência e a pobreza dessa comunidade carente de Fortaleza, com mais de 250 mil habitantes, gerava casos e mais casos de depressão, angústia e problemas como síndrome do pânico. "A cada cem pessoas de lá que eu atendia, em menos de dez casos era necessário prescrever algum medicamento. O que eles tinham era sofrimento", diz o psiquiatra Adalberto Bezerra, de 59 anos.   Desse contato com a pobreza e o sofrimento nasceu um projeto batizado de Terapia Comunitária. Adalberto, seu criador, também tem origem humilde. É de Canindé, no sertão cearense. Cresceu em um mundo que para ele parecia ter uma dimensão mágico-religiosa, em meio a centenas de romeiros. Peregrinos atraídos pelas graças de São Francisco. Cada um deles carregando um ex-voto (representação em madeira ou cera de uma parte do corpo, como pés, mãos e cabeças) a ser depositada na Basílica de São Francisco das Chagas. O santo, médico do sertão, era a inspiração de Adalberto.   A inspiração, no entanto, pendia para o lado religioso. O garoto que cresceu assistindo as histórias de sofrimento dos romeiros, doentes e famintos, queria ser padre. Com 14 anos separou-se da família e foi para o seminário. Continuou firme na intenção de seguir o sacerdócio, mas com 17 anos a faculdade de Medicina apareceu em sua vida. "Fui para um segundo universo, onde tudo se explica pela dimensão biológica", diz.   Adalberto continuava no seminário. Cursava medicina durante o dia e filosofia à noite. Desse encontro nasceu o choque inevitável. "Eram dois universos que excluíam o diferente", diz.   Na faculdade de medicina, no entanto, percebeu que as almas que pretendia salvar quando resolveu se tornar padre também tinham um corpo. No caso dos peregrinos do sertão, um corpo combalido pelas mazelas da pobreza. "Nessa época, os meus colegas que não acreditavam mais no Padre Cícero eram automaticamente promovidos a categoria de cientistas."   A resposta para essa crise de identidade, Adalberto encontrou numa história que povoa o imaginário do povo do Canindé. Diz a lenda, reforçada por um ex-voto depositado na basílica da cidade, que uma criança perdida na floresta amazônica foi salva pela intercessão de São Francisco das Chagas atendendo às preces de seus pais. "Percebi que essa era a minha história, assim como a menina foi salva quando seus pais recorreram às suas raízes culturais, eu precisava recorrer às minhas", afirma. "Assim me tornei cientista, caboclo, nordestino do sertão, com muito prazer."   Adalberto tornou-se médico no Ceará. Com a ajuda do então arcebispo de Fortaleza, d. Aloísio Lorscheider - que lhe concedeu uma bolsa de estudos - terminou a graduação em Filosofia e Teologia na França, onde também se tornou doutor em Antropologia. Conheceu a Europa e aprendeu outras línguas. A vontade, no entanto, era voltar para o sertão.   De volta ao Brasil e já professor da Faculdade de Medicina, da Universidade Federal do Ceará, retornou a Canindé. Agora para estudar aqueles mesmos ex-votos que cresceu vendo ser depositados na basílica de São Francisco. Em onze anos, catalogou 210 mil deles.   A pesquisa permitiu a Adalberto mapear , em meados dos anos 80, como andava a saúde do sertanejo nordestino. "Os pés poliomielíticos eram um reflexo das campanhas de vacinação que não foram realizadas", conta. Nesse período, no entanto, houve uma redução dos ex-votos que representavam os pés e aumento de número de cabeças.   Adalberto e seus alunos entrevistaram cerca de 1,5 mil pessoas que depositavam as cabeças. Dessas, 65% eram mulheres com sintomas freqüentes de dor de cabeça e insônia. "A preocupação delas era com os filhos que tinham ido para o São Paulo trabalhar e não davam mais notícias", conta. Pouco tempo depois, Adalberto percebeu a necessidade do povo da favela do Pirambú.

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