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Opinião|São Paulo: zero ou 62 mortos?

É uma infelicidade que nem a Prefeitura nem o Estado de São Paulo sejam capazes de concordar e divulgar dados confiáveis sobre o número de mortes que ocorre todos os dias na cidade

Atualização:

A cidade de São Paulo levou um susto nesta sexta-feira, 14. Numa mesma coletiva de imprensa, a Prefeitura anunciou que o número de mortes pelo novo coronavírus na cidade está caindo. Já o governo do Estado anunciou que o número de mortes na cidade está subindo. O número de mortos é o dado mais confiável e fácil de obter durante uma pandemia. Como numa guerra, ao fim de cada dia os mortos são colocados lado a lado e simplesmente contados. Mas nem isso nossos representantes eleitos parecem conseguir fazer. Como é possível que as mortes estejam ao mesmo tempo caindo e aumentando dia a dia em um mesmo município?

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A importância desse dado para a cidade é enorme. O plano de abertura do Estado usa os dados do governo estadual, mas a decisão final sobre as medidas adotadas na cidade depende da Prefeitura. O que vai acontecer em São Paulo? Vamos relaxar as medidas de distanciamento, seguindo os dados da Prefeitura? Ou vamos aumentar o distanciamento, como sugere os dados do governo estadual?

Como o resultado dessa medida afeta a vida de cada morador da cidade, vou tentar explicar o porquê dessa diferença. Aí você decide em quem acredita.

O secretário estadual da Saúde, Jean Gorinchteyn, em entrevista coletiva no Palácio dos Bandeirantes Foto: Divulgação/Governo do Estado de SP

Todo dia, em uma hora pré-determinada, um funcionário acessa o sistema que contabiliza o total de mortes por covid-19 na cidade de São Paulo. No dia 11 de agosto, o total de mortes era 10.613. No dia 12, quando ele abriu o sistema, o total de mortes era 10.675. Ele subtrai 10.613 de 10.675 e conclui que nas últimas 24 horas o número de mortos foi de 62 pessoas.

Se esse funcionário trabalha na Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, ele atualiza a tabela registrando: no dia 12 de agosto, morreram em São Paulo 62 pessoas. Parece razoável. Agora se esse funcionário trabalha na Secretaria de Saúde da cidade de São Paulo, ele vai olhar os dados de cada um dos 62 óbitos para descobrir em que dia essa pessoa realmente morreu. Olhando os 62 óbitos registrados nesse dia, o funcionário da Secretaria de Saúde do município descobre que nenhuma pessoa morreu nas 24 horas anteriores.

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Alguns haviam morrido dias atrás, outros, semanas atrás. Alguns até um mês atrás, mas não tinham aparecido no número de óbitos por covid-19, pois o resultado do teste não tinha sido entregue e, portanto, ele havia sido classificado como uma morte por SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave). Agora que o teste chegou, ele entrou na lista dos mortos por covid-19.

Então ele registra no sistema da prefeitura 0 (zero) mortes no dia 12 de agosto. Pronto o governo estadual diz que morreram 62, e o governo municipal diz que ninguém morreu.

Não satisfeito, o funcionário da Prefeitura adiciona cada uma das 62 mortes na linha da sua tabela que corresponde à data em que a pessoa morreu e soma novamente o total de mortes. O resultado é que o número de mortes até o dia 12 de agosto é idêntico na tabela da Prefeitura e na tabela do governo estadual. Na tabela do governo estadual, o número de mortes dos dias passados, uma vez  atualizando, nunca muda.

Na tabela da Prefeitura, os dados preenchidos nos 20, 30 dias passados continuam mudando até que nenhuma nova morte nesse dia seja registrada.

Formalmente, o método da Prefeitura é o correto pois cada morte é contabilizada na data em que ocorreu. Mas esse método provoca uma distorção importante. Como as mortes demoram até um mês para serem colocadas no sistema (burocracias várias causam esse atraso), os dados da prefeitura sempre mostram um número muito pequeno de mortes nos dias mais recentes do passado, e a curva está sempre imbicada para baixo.

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Mas ao longo de um mês ou mais, os 0 (zero) casos do dia 12 vão crescer até atingirem o número real de pessoas que morreram no dia 12, que por enquanto é desconhecido. Além disso, nos gráficos e tabelas da Prefeituram os números do passado mudam constantemente, e por isso os números da primeira semana de agosto vão continuar mudando até a primeira semana de setembro.

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Para corrigir essa distorção, os epidemiologistas desenvolveram um método chamado nowcasting, no qual os dados do último mês não são plotados diretamente, mas são estimados a partir do tempo de retardo da notificação da morte (o tempo entre a morte e o aparecimento da morte no sistema). Essa metodologia é muito provavelmente a melhor estimativa do número de mortes a cada dia na cidade de São Paulo. Não é necessário dizer que a Prefeitura não utiliza esse método, preferindo sempre mostrar uma curva apontada para baixo.

Um grupo de cientista tem divulgado diariamente os dados como calculados pela prefeitura utilizando o método de nowcasting. Eles podem ser encontrados aqui e são esses os dados que utilizo para acompanhar a pandemia na cidade de São Paulo. Esses dados  mostram que o número de casos está caindo na cidade, não tão rápido como afirma a Prefeitura, mas caindo.

É uma infelicidade que nem a Prefeitura nem o Estado de São Paulo sejam capazes de concordar e divulgar dados confiáveis sobre o número de mortes que ocorre todos os dias na cidade. E esses são os números mais fáceis de apurar. O que dizer então de números mais difíceis de medir, como o número de novos casos, o número de pessoas capazes de infectar outras e o número de pessoas já infectadas. Essa imensa desorganização, falta de transparência e distorção abrem uma enorme possibilidade de manipular a opinião pública.

Mais informações: Nowcasting by Bayesian Smoothing: A Flexible, Generalizable Model for Real-time Epidemic Tracking. PLOS Computational Biology doi:10.1371/journal.pcbi.1007735 2019

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Opinião por Fernando Reinach
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