Recentemente vi uma piada com a lista de reclamações a serem feitas ao longo do ano. No verão, reclamar do calor; no inverno, do frio. No carnaval, falar mal da festa ou falar mal de quem fala mal da festa. Mais tarde, há eleições e Copa do Mundo, com reclamações para todos os gostos. E assim vamos, de discussão em discussão, até chegar às uvas passas no arroz na ceia de Natal.
Senti falta de um tema na lista: reclamar da rotina. Mas talvez não estivesse ali justamente por não criar intriga, afinal, todo mundo fala mal dela. É compreensível. Fazer todo dia as mesmas coisas, nos mesmos horários, falar com as mesmas pessoas, ouvir os mesmos comentários, reprisar as mesmas respostas, chega uma hora que cansa. Esse é um dos motivos para existirem festas, férias, finais de semana. Eventos que quebram a rotina aparecem como âncoras da nossa atenção a mobilizar nossos afetos de tempos em tempos.
É como se estivéssemos numa estrada reta, no meio de uma planície com uma paisagem monótona – o cérebro vai entrando em modo automático, reduzindo a atenção e os níveis de alerta –, até que surge algo inesperado: um animal na estrada, uma curva, mudanças na paisagem, uma montanha no horizonte, o que for.
A monotonia acaba e despertamos, ao menos momentaneamente, voltando ao estado de alerta e atenção. Os engenheiros sabem da importância de quebrar a monotonia das estradas e testam intervenções como sonorizadores, placas, refletores – tudo para tirar o cérebro do piloto automático.
Nosso dia a dia é bem parecido com a estrada monótona. A repetição das atividades de maneira cíclica e previsível reduz a necessidade de atenção e tomada de decisão – como já sabemos mais ou menos o que vamos comer, onde vamos sentar, com quem vamos falar e sobre quais assuntos, não precisamos gastar tanto tempo e energia nessas tarefas. O lado ruim – de que as pessoas reclamam – é a monotonia, que tentamos quebrar celebrando as sextas-feiras e programando agendas para os finais de semana. O lado bom é que, sem essa economia de energia, os dias seriam simplesmente esgotantes.
Imagine se a cada momento do dia tivéssemos de analisar as variáveis envolvidas em cada decisão, deliberar prós e contras, pesar os fatores para então escolher o que fazer.
Se não delegássemos muitas coisas para nosso piloto automático, o cérebro estaria continuamente envolvido nesse trabalho, consumindo mais energia do que teríamos disponível. E chegaríamos ao fim do dia acabados.
Então já podemos criar um time para defender a rotina. As definições de polêmica foram atualizadas.
* É PROFESSOR COLABORADOR DO DEPARTAMENTO DE PSIQUIATRIA DA FACULDADE DE MEDICINA DA USP