Brasil é o 2º país com mais mortes de crianças por covid

Levantamento feito pelo Estadão leva em conta países com mais de mil mortes por milhão de habitantes e que tenham pelo menos 20 milhões de habitantes

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Por Mariana Hallal e Bruno Luiz
7 min de leitura

Lorena viu a filha Maria, de 1 ano e 5 meses, morrer em seus braços. Com diagnóstico tardio, Lucas, de um ano, filho de Jéssika, enfrentou diversas complicações relacionadas à covid e morreu. José Rivera viu o filho Bernardo, de três anos, sucumbir à covid-19 uma semana depois de testar positivo.

Eles não são exceções. Até meados de maio, 948 crianças de zero a nove anos morreram de covid no Brasil, segundo dados do Sistema de Informação de Vigilância da Gripe (Sivep-Gripe) compilados pelo Estadão. Sem políticas de proteção à infância, sem controle da pandemia e com escolas fechadas, o Brasil fica em segundo lugar no triste ranking de crianças vítimas da covid, atrás apenas do Peru.

José Rivera viu o filho Bernardo, de três anos, sucumbir à covid-19 uma semana depois de testar positivo Foto: EPITACIO PESSOA/ESTADAO

A cada um milhão de crianças de zero a nove anos existentes no País, 32 perderam a vida para a covid. No Peru, país com o maior número de mortes dentre os 11 analisados, foram 41 por milhão. As vizinhas Argentina e Colômbia tiveram 12 e 13 mortes por milhão, respectivamente.

Para a análise, foram considerados os países que registraram pelo menos mil mortes por milhão de habitantes e que possuem mais de 20 milhões de habitantes. Polônia e Ucrânia, que entrariam na lista, foram excluídas pela ausência de dados. O cálculo foi feito pelo Estadão com apoio de Leonardo Bastos, estatístico da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). 

Nos países europeus, o cenário foi completamente diferente. O Reino Unido e a França registraram apenas quatro mortes de crianças de zero a nove anos, o que dá uma taxa de 0,5 morte por milhão em cada um dos países. No continente, o maior número foi registrado na Espanha. Lá, a cada um milhão de crianças, três morreram por covid — um décimo do índice brasileiro.

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Fátima Marinho, epidemiologista Sênior da Vital Strategies, uma organização global de saúde pública, explica que o sistema de saúde do Peru é muito mais precário que o do Brasil. Por isso, já era esperado que o país andino registrasse índices piores. “O serviço público de saúde do Peru é muito mais incipiente. Não trata nenhuma doença cara, por exemplo”, diz.

Ainda na América Latina, o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro tinha capacidade para lidar melhor com a pandemia em comparação aos sistemas mexicano e colombiano, segundo Fátima. No entanto, nossos índices de mortalidade e descontrole são bem piores.

“O México tem um plano popular de saúde, mas é muito restrito. Quem não paga pelo menos esse plano, morre na calçada. Esses tipos de sistema de saúde são um desafio. Com exceção da Argentina, Chile e Uruguai, estávamos mais bem preparados que os outros países latinos para enfrentar a pandemia”, fala a epidemiologista.

A maior parte das mortes aconteceu em maio do ano passado, quando 131 crianças de zero a nove anos perderam a vida para a covid-19 no Brasil. Em seguida, vem abril deste ano, com 99 óbitos. Os números de maio de 2021 ainda não estão consolidados. Os bebês de até dois anos foram as principais vítimas, correspondendo a 32,7% das mortes analisadas.

Crianças negras morreram mais

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De acordo com os dados do Sivep-Gripe, 57% das crianças mortas pela covid no Brasil eram negras (grupo que inclui pretos e pardos). As crianças brancas correspondem a 21,5% das vítimas, as amarelas (de origem asiática) 0,9% e 16% não tiveram a raça indicada. 

A morte entre indígenas também foi bastante expressiva. Apesar de representarem apenas 0,5% da população brasileira, 4,4% das crianças que perderam a vida para a covid no Brasil eram indígenas. Em números brutos, foram 42 mortes, a maioria no Mato Grosso (12) e no Amazonas (11). 

Fátima Marinho fala que, devido à desigualdade social, o índice de mortalidade entre as crianças negras já era maior antes da pandemia. A covid veio para ampliar essa desigualdade. “Muitas das crianças negras residem em moradias superlotadas, com adultos que precisam sair para trabalhar, que têm empregos mais expostos ao vírus, que pegam transporte público. Dessa forma, a carga viral que chega para a criança é muito grande”, diz. 

Os indígenas, por sua vez, são naturalmente mais suscetíveis ao vírus. “É uma forma clássica de exterminar indígenas no Brasil. Foi assim com o sarampo, a gripe, a influenza…”. Por serem mais suscetíveis, a epidemiologista acredita que eles deveriam estar muito mais protegidos. “Por que ainda não vacinamos todos os indígenas acima de 12 anos?”, questiona. Países como os Estados Unidos já autorizaram a vacinação de adolescentes acima de 12 anos com o imunizante da Pfizer, disponível no Brasil.

A epidemiologista Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), aponta o fim do Mais Médicos como um dos motivos para o alto índice de morte, principalmente entre as populações negra e indígena. Um dos objetivos do programa era garantir atendimento básico de saúde a comunidades mais afastadas, com estrutura precária. “Não houve uma substituição dos profissionais. Os locais de mais difícil acesso, com população carente, enfrentaram dificuldades no atendimento médico”.

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Falta de políticas públicas

A falta de uma coordenação nacional sobre os rumos da educação no País é uma das principais críticas das especialistas. As escolas ficaram fechadas durante praticamente toda a pandemia no Brasil e agora, mais de um ano depois, ainda não há investimentos em readequação da estrutura. Países como o Reino Unido, por exemplo, já lançaram programas nacionais de suporte à educação para reverter as perdas causadas pela pandemia.

“O Ministério da Educação desapareceu, ninguém viu, ninguém sabe. Teve o orçamento cortado em uma época que deveria ter investido na estrutura das escolas”, critica Ethel. Ela também fala que faltam critérios para direcionar a abertura e o fechamento de escolas.

Sem aulas, sem auxílio emergencial que cubra todas as despesas da casa e com a retomada das atividades, as crianças pequenas, especialmente as mais vulneráveis, ficaram mais expostas porque seus pais precisaram sair para trabalhar. “A gente abriu a possibilidade para algo que acontecia no Brasil na década de 80, as mães crecheiras”, diz Ethel. O termo refere-se a mulheres que cuidam de um grupo de crianças, geralmente do mesmo bairro, em troca de algum valor. 

Para Fátima Marinho, as crianças deixaram de ser prioridade no País. “O Estado brasileiro abandonou as crianças à própria sorte. Cortaram a escola e não deram outra alternativa”, diz. Ela também critica a falta de políticas públicas voltadas à proteção da infância. “Além da covid, as crianças sofrem com a violência dentro e fora de casa”, aponta.

As duas epidemiologistas dizem que é necessário um movimento federal para adequar as escolas à nova realidade. “A pandemia vai durar cinco anos, na previsão otimista. As crianças vão ficar sem escola por cinco anos?”, questiona Fátima.

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As soluções apontadas por elas passam pela criação de salas com menos alunos, contratação de professores mais jovens para preservar os mais velhos e testagem em massa. Outra alternativa é instalar filtros HEPA, que evitam a propagação de vírus através do ar. “Se colocar as crianças como prioridade e expandir o orçamento da educação, dá para montar alternativas”, diz Fátima.

Metodologia

Para a análise, usamos os dados oficiais de cada um dos 11 países. Para obter a taxa de mortes por milhão, dividimos o número de óbitos por covid de crianças de zero a nove anos pelo número total de habitantes dessa faixa etária de cada país. Os dados sobre número de habitantes são da Organização das Nações Unidas.

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