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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Ser 'normal' significa tantas coisas diferentes. Desde numericamente comum até moralmente desejável

Pessoas esperam que a gente tenha respostas para definir se um comportamento é normal ou não. Mas, não temos

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Será que isso é normal?, me perguntam frequentemente. Ossos do ofício. Quando se é psiquiatra as pessoas esperam que a gente tenha no bolso do colete um gabarito com as respostas para definir se um comportamento é normal ou não. Pode ser meio decepcionante, mas não temos. “Normal” significa tantas coisas diferentes, desde numericamente comum até moralmente desejável, de esteticamente aprazível a socialmente aceito, que preferimos nos abster de diagnosticar algo como anormal. No máximo temos instrumentos para diferenciar o saudável do patológico. E olhe lá.

Quando se é psiquiatraas pessoas esperam que a gente tenha no bolso do colete um gabarito com as respostas para definir se um comportamento é normal ou não. Pode ser meio decepcionante, mas não temos. Foto: Unsplash

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Quando se trata de autoridades, então, a coisa complica ainda mais. Recentemente estive num evento discutindo o papel dos psiquiatras em casos de dúvidas quanto à sanidade de políticos e vimos como o problema é intricado. Primeiro porque ele é persistente: os relatos vão da licantropia (quadro em que o sujeito se acreditava transformado em lobo ou outras bestas feras) de Nabucodonosor da Babilônia, passam pela porfiria aguda intermitente (doença do metabolismo do sangue que pode levar a quadros de agitação) do Rei Jorge III na Inglaterra – cujo médico também tratou da rainha D. Maria I, conhecida como “a louca” – atravessa os tempos contemporâneos, na inevitável contestação da sanidade dos ditadores sanguinários, e ao que parece se dirige ao futuro – há um episódio de Star Trek no qual consideram a possibilidade de afastar o capitão da Enterprise (não lembro se o Kirk ou o Picard) por instabilidade mental. Ou seja, a questão sempre existiu e sempre existirá.

Em segundo lugar, o problema é complexo porque, a não ser em casos flagrantes de um rei andando de quatro e uivando pela floresta ou saindo sem roupa pela rua – casos em que o diagnóstico fica mais evidente, justificando a intervenção – estabelecer se determinados comportamentos são patológicos depende do impacto na vida da pessoa. Se o sujeito tem uma característica rara na população – digamos, uma inteligência extremamente elevada – ele não é normal no sentido estatístico. Mas não pode ser considerado doente – tal anormalidade é mais uma vantagem do que um sintoma. E mesmo se pensarmos num sintoma negativo, que supostamente seria desvantajoso para o paciente, ele eventualmente será usado a favor de um povo. Um presidente cronicamente ansioso poderia, por conta disso, tomar atitudes mais precavidas, expondo a população a menos riscos.

Por isso, estou decretando moratória à avaliação de normalidade de possíveis candidatos a cargos eletivos. Não me perguntem mais se fulano é anormal. Perguntem se é competente. Mas não para os psiquiatras, e sim para todo mundo. Perguntem nas urnas. Afinal, como diz Jerry Seinfeld numa piada que já citei antes, se fosse normal mesmo a pessoa nem cogitaria ser presidente para começo de conversa. Faz todo sentido. Para se lançar candidata a pessoa precisa logo de saída de uma autoconfiança acima da média. Tem que ser capaz de tolerar conversa fiada com uma paciência fora do comum. E ter uma lábia que também não é normal.

Pensando bem, eu quero mais candidatos anormais. Um presidente normal seguiria a norma vigente do conformismo político, por exemplo, se envolvendo em acordos e negociatas que só alguém anormal teria a coragem de não fazer. Um presidente normal estaria sujeito às mesmas reservas com relação à tecnologia e à ciência que vemos na população geral – precisaríamos de alguém com inteligência acima da média para aceitar inovações, compreender e tentar implementar avanços científicos na nação. Um presidente normal seria seduzido por respostas fáceis e superficiais – poderia pensar, por exemplo, que armar a população é uma forma eficaz de diminuir a violência. É normal pensar assim e seria preciso um presidente fora do normal para ser capaz de se aprofundar no assunto e compreender que a realidade é muito mais complexa.

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Solicito, então, aos candidatos de todos os tipos, seja a síndico ou a prefeito, a presidente do grêmio estudantil ou da República, que apresentem suas credenciais para comprovar que estão fora do normal. Porque pelo visto políticos na média só produzem resultados medíocres.*É PROFESSOR COLABORADOR DO DEPARTAMENTO DE PSIQUIATRIA DA FACULDADE DE MEDICINA DA USP

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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