Será que isso é normal?, me perguntam frequentemente. Ossos do ofício. Quando se é psiquiatra as pessoas esperam que a gente tenha no bolso do colete um gabarito com as respostas para definir se um comportamento é normal ou não. Pode ser meio decepcionante, mas não temos. “Normal” significa tantas coisas diferentes, desde numericamente comum até moralmente desejável, de esteticamente aprazível a socialmente aceito, que preferimos nos abster de diagnosticar algo como anormal. No máximo temos instrumentos para diferenciar o saudável do patológico. E olhe lá.
Quando se trata de autoridades, então, a coisa complica ainda mais. Recentemente estive num evento discutindo o papel dos psiquiatras em casos de dúvidas quanto à sanidade de políticos e vimos como o problema é intricado. Primeiro porque ele é persistente: os relatos vão da licantropia (quadro em que o sujeito se acreditava transformado em lobo ou outras bestas feras) de Nabucodonosor da Babilônia, passam pela porfiria aguda intermitente (doença do metabolismo do sangue que pode levar a quadros de agitação) do Rei Jorge III na Inglaterra – cujo médico também tratou da rainha D. Maria I, conhecida como “a louca” – atravessa os tempos contemporâneos, na inevitável contestação da sanidade dos ditadores sanguinários, e ao que parece se dirige ao futuro – há um episódio de Star Trek no qual consideram a possibilidade de afastar o capitão da Enterprise (não lembro se o Kirk ou o Picard) por instabilidade mental. Ou seja, a questão sempre existiu e sempre existirá.
Em segundo lugar, o problema é complexo porque, a não ser em casos flagrantes de um rei andando de quatro e uivando pela floresta ou saindo sem roupa pela rua – casos em que o diagnóstico fica mais evidente, justificando a intervenção – estabelecer se determinados comportamentos são patológicos depende do impacto na vida da pessoa. Se o sujeito tem uma característica rara na população – digamos, uma inteligência extremamente elevada – ele não é normal no sentido estatístico. Mas não pode ser considerado doente – tal anormalidade é mais uma vantagem do que um sintoma. E mesmo se pensarmos num sintoma negativo, que supostamente seria desvantajoso para o paciente, ele eventualmente será usado a favor de um povo. Um presidente cronicamente ansioso poderia, por conta disso, tomar atitudes mais precavidas, expondo a população a menos riscos.
Por isso, estou decretando moratória à avaliação de normalidade de possíveis candidatos a cargos eletivos. Não me perguntem mais se fulano é anormal. Perguntem se é competente. Mas não para os psiquiatras, e sim para todo mundo. Perguntem nas urnas. Afinal, como diz Jerry Seinfeld numa piada que já citei antes, se fosse normal mesmo a pessoa nem cogitaria ser presidente para começo de conversa. Faz todo sentido. Para se lançar candidata a pessoa precisa logo de saída de uma autoconfiança acima da média. Tem que ser capaz de tolerar conversa fiada com uma paciência fora do comum. E ter uma lábia que também não é normal.
Pensando bem, eu quero mais candidatos anormais. Um presidente normal seguiria a norma vigente do conformismo político, por exemplo, se envolvendo em acordos e negociatas que só alguém anormal teria a coragem de não fazer. Um presidente normal estaria sujeito às mesmas reservas com relação à tecnologia e à ciência que vemos na população geral – precisaríamos de alguém com inteligência acima da média para aceitar inovações, compreender e tentar implementar avanços científicos na nação. Um presidente normal seria seduzido por respostas fáceis e superficiais – poderia pensar, por exemplo, que armar a população é uma forma eficaz de diminuir a violência. É normal pensar assim e seria preciso um presidente fora do normal para ser capaz de se aprofundar no assunto e compreender que a realidade é muito mais complexa.
Solicito, então, aos candidatos de todos os tipos, seja a síndico ou a prefeito, a presidente do grêmio estudantil ou da República, que apresentem suas credenciais para comprovar que estão fora do normal. Porque pelo visto políticos na média só produzem resultados medíocres.*É PROFESSOR COLABORADOR DO DEPARTAMENTO DE PSIQUIATRIA DA FACULDADE DE MEDICINA DA USP