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Gabigol precisa entender seu papel como ídolo

Se Gabigol quer ou não essa responsabilidade é outra história. O fato é que o sucesso que ele conquistou traz essa consequência que pode ser encarada como privilégio ou um peso

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Por André Fran
Atualização:

Tive a oportunidade de estar por duas vezes dentro de uma das mais fechadas ditaduras do mundo: a Coreia do Norte. Em ambas, algo que me chamou muito a atenção foi como o culto à personalidade, característica de regimes totalitários, exerce importante papel no controle da sociedade norte-coreana. Passeando por Pyongyang, a capital do país, é impossível não reparar as onipresentes canções de exaltação ao ditador Kim Jong-un, os cartazes que o retratam como herói do povo ou sua bajulação constante pelos meios de comunicação. Ali a máquina de propaganda os transforma em ídolos acima do bem e do mal. Afinal, ídolos são infalíveis e existem para serem adorados.

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Eu lembrava disso no outro fim de semana, quando Gabigol, o craque do Flamengo, foi flagrado pela polícia aglomerando com mais outras 200 pessoas em um cassino clandestino. Mas o que Kim Jong-un e Gabriel Barbosa, o Gabigol, teriam em comum? Absolutamente nada, claro. Enquanto o ditador norte-coreano oprime e aterroriza seus cidadãos, o jogador do Flamengo só faz isso com as torcidas adversárias. Mas vale uma reflexão sobre a idolatria e o poder de influência de ídolos ou mitos, independentemente do "campo" em que atuam.

No mesmo dia em que foi detido, o craque da bola foi liberado. Pouca ou nenhuma consequência prática para quem estava curtindo a vida adoidado e desrespeitando regras sanitárias como se o País não estivesse com leitos de hospitais lotados e pessoas morrendo sem ar nas filas das UTIs. A torcida o perdoou, a imprensa pegou leve e o próprio jogador em nenhum momento assumiu a responsabilidade pelos seus atos. 

Se Gabigol quer ou não essa responsabilidade é outra história. O fato é que o sucesso que ele conquistou traz essa consequência que pode ser encarada como privilégio ou um peso. "Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades", já diria o Homem-Aranha, o personagem da Marvel há muitas décadas acostumado com a idolatria. 

Gabigol, atacante do Flamengo. Foto: Alexandre Vidal/Flamengo

Mas a questão não é tão simples. As palavras do paladino da justiça nos quadrinhos não tiveram impacto em outro grande herói de minha infância, o craque da NBA Charles Barkley – que ficou famoso por suas enterradas poderosas e temperamento explosivo. Nos anos 90 ele fez um comercial onde dizia: "Não sou um exemplo. Não sou pago para ser um exemplo. Sou pago para jogar basquete. Pais é que devem ser exemplos. Só porque eu faço uma cesta não quer dizer que deva criar seus filhos." Em sua biografia, Barkley lembra que nunca foi tão massacrado por uma opinião. Direção da liga, fãs, jornalistas… todos contra ele. Na mesma época, Michael Jordan, o maior jogador de basquete de todos os tempos, causou polêmica com uma atitude parecida. Questionado por não se posicionar em relação a questões políticas e raciais. “Republicanos também compram tênis”, disse ele, tentando dissociar o atleta do cidadão. 

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Após se sagrar campeão mundial de boxe em 1964, Cassius Clay renunciou ao "seu nome de escravo", assumiu a identidade de Muhammad Ali e passou a criticar duramente a guerra do Vietnã e o racismo. Resultado: foi preso e perseguido por vários anos.

Ninguém está questionando o atleta Gabigol. Dentro das quatro linhas ele pode errar ou acertar, mas fora delas as consequências dos seus atos podem ser fatais. Por isso, o Gabigol cidadão deve ser cobrado na mesma medida que outros negacionistas da pandemia. Essa gente que se recusa a usar máscara por pura ignorância, que não pratica o distanciamento por falta de empatia. Faltou ao Gabigol ídolo entender o seu papel. Ironicamente, em sua conta no Instagram há um post com a frase do falecido cantor Chorão: "Melhor do que a palavra, é o exemplo." Quando uma celebridade não assume a responsabilidade por atos que podem causar a morte de seus próprios fãs, que tipo de ídolo ele quer ser?

*É DIRETOR, APRESENTADOR DE TV, JORNALISTA E TEM MAIS DE 60 PAÍSES CARIMBADOS NO PASSAPORTE

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