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'Seria preciso um luto coletivo para gravar o nome de cada pessoa'

Antropólogo John Cowart Dawsey, professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, avalia efeitos da pandemia na sociedade e relações com a morte de George Floyd, nos Estados Unidos

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Por Gonçalo Junior
Atualização:

Está muito distante da realidade brasileira a criação de monumentos para que as pessoas possam viver coletivamente a experiência do luto pelas mais de 40 mil vítimas da covid-19? Para o professor John Cowart Dawsey, do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, essa ideia mereceria ser levada em consideração. A pandemia do novo coronavírus vem mudando de forma profunda a relação das pessoas com a morte que seria preciso uma espécie de luto coletivo.

Enterro em massa de pessoas que faleceram devido ao novo coronavírus, no cemitério Parque Taruma, em Manaus. Foto: Bruno Kelly/Reuters

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“Seria preciso um luto coletivo para gravar o nome de cada pessoa. Tem gente que grava o nome de outras pessoas no corpo. Nós teríamos de gravar esses nomes no corpo coletivo, na alma brasileira, para lembrar as pessoas”, diz o estudioso.

O especialista, que nasceu no Brasil e possui cidadania norte-americana por causa da mãe e avós, dedica-se aos estudos da antropologia da experiência e já acompanhou algumas pesquisas sobre a morte. Uma delas analisa a relação entre a busca pelo esclarecimento das mortes durante a ditadura militar e o luto dos familiares. Com a pandemia, ele acredita que a proibição dos ritos de despedida das vítimas por questões sanitárias dificulta a aceitação da morte. 

Dawsey também vê relações entre a pandemia e a morte do ex-segurança negro George Floyd, nos Estados Unidos, que causou protestos mundiais contra o racismo. “Todos nós, a sociedade e o planeta, precisamos respirar. As sociedades não vão conseguir respirar com o joelho no pescoço”, disse ao Estadão.

Madalena Cruz da Silva enxuga as lágrimas perto de sua filha Vera Lucia logo após o enterro de seu filho, Paulo Roberto Cruz da Silva, 47 anos, que morreu da doença por coronavírus (COVID-19), no cemitério São Luiz, em São Paulo. Foto: REUTERS / Amanda Perobelli

Quais mudanças a pandemia vem trazendo para a relação das pessoas com a morte?

A morte cria um vazio pela ausência da pessoa e pela ausência de sentido. São momentos cruciais e importantes. É um momento liminar. Por isso, nós criamos os ritos de despedida. As pessoas se reúnem e rememoram a história de vida da pessoa que se foi e a própria história individual. É importante vivermos juntos essa experiência da morte. Não poder estar junto é muito duro e muito difícil. Estamos vivendo de forma coletiva, mas quem perde pessoas queridas sofre muito com essa falta do ritual. É possível sentir como se a pessoa ainda estivesse ali. É quase a presença de uma ausência, uma dor muito grande. A experiência não termina.

O que significam 40 mil mortes? É possível pensar em um luto coletivo?

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Essa é uma pergunta especial. Nós precisaríamos de um luto coletivo, como um corpo social, não individual. Elas morrem junto e depois renascem de alguma forma. A coletividade precisa olhar o que está acontecendo e sofrer junto, ter empatia com quem está sofrendo. Em Washington, temos um monumento com os nomes dos soldados que morreram no Vietnã. Em Nova York, temos as vítimas dos ataques às “Torres Gêmeas”. Aqui, precisamos também pensar nas pessoas. Seria preciso um luto coletivo para gravar o nome de cada pessoa. Tem gente que grava o nome de outras pessoas no corpo. Nós teríamos de gravar esses nomes no corpo coletivo, na alma brasileira, para lembrar as pessoas. Saber seus nomes e suas histórias. A TV, os jornais e os outros veículos de comunicação fazem isso, mas precisaríamos viver isso juntos.

Homem passa por um mural com a imagem de George Floyd, pintado em uma parteda controversa barreira de separação de Israel, em Belém, na Cisjordânia ocupada, com a mensagem "Não consigo respirar, quero justiça, não O2". Foto:Musa AlShaer/ AFP Foto:

Como será o "novo normal" na relação com a morte?

Antes da pandemia, o normal já era assustador. A gente vem ignorando a morte, mas a morte não nos ignora. A gente vem ignorando muitas mortes sem sentido, nas periferias, nos campos, nas florestas. Existe muito ódio sendo produzido. Raiva que vira dispositivo do poder e culturas do terror. Diante do vírus, a gente precisa das forças da vida. Esse movimento que ocorre nos Estados Unidos, pela morte do homem negro, no qual muitas pessoas repetem as últimas palavras dele ("I can't breathe"/"Eu não posso respirar"), tem relação com o vírus, uma doença respiratória. É a própria vida social.

O antropólogo John Cowart Dawsey estabelece relações entre as últimas palavras do ex-segurança George Floyd, morto por policiais nos Estados Unidos, e o "sufocamento" da sociedade Foto: Arquivo pessoa

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Como assim?

As sociedades não vão conseguir respirar com o joelho no pescoço. Temos de cuidar das relações da vida social, da democracia – acho que nunca chegamos a uma democracia plena -, buscar igualdade, respeito e carinho. As pessoas são essenciais, especialmente as profissionais de saúde que cuidam de todos que estão entre a vida e a morte. A gente precisa de formas de cura e de criar empatia. O planeta também precisa respirar. Algumas reportagens mostram como o planeta está respirando melhor com a parada da indústria e nos movimentos dos carros. A gente precisa repensar nossa vida para que o planeta precisa respirar. A própria vida do planeta pode renascer. Todos nós precisam respirar.

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