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Sindemia: entenda a classificação proposta para a covid-19

Conceito observa interação entre diferentes doenças e condições socioeconômicas; especialistas sugerem ações para tratar doenças crônicas

Por Paula Felix
Atualização:

Em artigos recentes, um deles de seu editor-chefe Richard Horton, o periódico científico The Lancet passou a classificar a covid-19 como uma sindemia e não como uma pandemia, conforme se tornou usual desde que foi declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em março deste ano.

O conceito, que data da década de 1990, foi criado pelo antropólogo médico americano Merrill Singer e diz respeito à interação entre doenças em uma abordagem mais ampla, analisando fatores como o contexto socioeconômico.

A classificação da covid-19 como uma sindemia pede medidas não só de curto prazo, como a vacina, mas para evitar que novos episódios ocorram no futuro Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

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"A ideia de sindemia surgiu na época da Aids em uma análise que não é só o fato infeccioso, porque ele ocorre dentro de um contexto, que pode ser desnutrição, obesidade, diabetes, hipertensão. Por isso que não tem de focar absolutamente em um fator só, como está acontecendo agora com a covid-19. Tem fatores juntos com a doença, um efeito sinérgico, em que uma faz com que a outra seja mais grave", explica Paulo Olzon, clínico e infectologista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Médico-endocrinologista e presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (ABESO), Mario Kehdi Carra diz que as pessoas em situação de vulnerabilidade social acabam sofrendo mais diante desse cenário. "Ela também está associada ao risco de baixa renda, às pessoas desfavorecidas, que acabam tendo um contato maior com o vírus e se cuidam menos dessas outras doenças crônicas."

Em seu artigo no Lancet, Horton destacou a importância de se observar a interação entre a covid-19 e as doenças não transmissíveis, como as doenças cardiovasculares e respiratórias crônicas, câncer, diabete e obesidade, assim como as populações atingidas por elas.

"Essas condições estão se agrupando em grupos sociais de acordo com padrões de desigualdade profundamente enraizados em nossas sociedades. A agregação dessas doenças em um contexto de disparidade social e econômica exacerba os efeitos adversos de cada doença separada. Covid-19 não é uma pandemia. É uma sindemia", diz, no artigo.

Ele explica que a questão não é apenas de comorbidade. Em um quadro sindêmico, interações biológicas e sociais aumentam a possibilidade de uma pessoa ficar mais suscetível a uma doença e ser mais impactada por ela. Horton diz ainda que, embora as mortes prematuras por essas doenças estejam caindo, isso tem ocorrido em ritmo lento e o número de pessoas que vivem com doenças crônicas é crescente.

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No Brasil, quase 20% da população é obesa e há 36 milhões de pessoas que vivem com hipertensão. Com diabete, são 16,8 milhões de adultos entre 20 e 79 anos. O Instituto Nacional de Câncer (INCA) estima que, para cada ano do triênio 2020-2022, vão ocorrer 625 mil casos novos de câncer no País.

Estratégias

De acordo com os especialistas ouvidos pelo Estadão, a classificação da covid-19 como uma sindemia pede medidas não só de curto prazo, como a vacina, mas para evitar que novos episódios ocorram no futuro. "Não tem de ficar simplesmente focado na história da vacina. É preciso melhorar a situação socioeconômica da população", diz Olzon.

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Carra avalia que, com a possibilidade de o vírus continuar circulando e infectando as pessoas por tempo indeterminado, é necessário apostar em ações que reduzam os casos de doenças crônicas. "A forma de se precaver é melhorar as condições para que as pessoas sejam tratadas dessas outras doenças para que (a covid-19) seja menos grave. Tem de existir um trabalho intenso das autoridades de uma maneira séria para explicar por que a população tem de mudar seus hábitos e investimentos da saúde pública para melhorar os tratamentos dessas outras doenças."

O convite à reflexão é feito no artigo publicado por Horton no Lancet: "A crise econômica que se aproxima de nós não será resolvida com um medicamento ou uma vacina. Nada menos que um avivamento nacional é necessário. Abordar a covid-19 como uma sindemia irá convidar a uma visão mais ampla, abrangendo educação, emprego, habitação, alimentação e meio ambiente. Ver a covid-19 apenas como uma pandemia exclui este prospecto mais amplo, mas necessário".