Sozinhos na rua: a tragédia anunciada pelo coronavírus nos centros urbanos das cidades

Cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília não têm abrigos suficientes para acomodar aqueles que não têm casa

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Por André Borges
5 min de leitura

BRASÍLIA – A rua. O espaço onde a vida social acontece e que passou a ser evitado por todos é o lar de mais de 120 mil famílias no Brasil, pessoas que perambulam de um lado para o outro, sem ter para onde ir. Invisíveis no cotidiano das grandes cidades, os moradores de rua estão na linha de frente do novo coronavírus, com risco iminente de serem varridos pela doença.

Na rodoviária de Brasília, a três quilômetros do Palácio do Planalto, onde o presidente Jair Bolsonaro abraçou pessoas uma semana atrás e disse que a covid-19 não passava de uma fantasia, o morador de rua Rubens da Silva, 53 anos, afirma que está com medo da doença, mas que vê riscos de, antes dela, morrer de fome. “Ouvi falar dessa coisa, a gente fica com medo. Mas pra mim, a tristeza mesmo é não ter o que comer. Eles fecharam tudo. A gente tá ficando sozinho na rua.”

Idoso dorme na rodoviária em Brasília Foto: André Borges/Estadão

Rubens da Silva faz parte da crescente estatística dos esquecidos. Nos últimos sete anos, a quantidade de famílias em situação de rua registradas no Cadastro Único, que serve de base para o Ministério da Cidadania tocar programas sociais, aumentou mais de 16 vezes, de 7.368 famílias em 2012 para mais de 120 mil famílias em 2019.

Cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília não têm abrigos suficientes para acomodar aqueles que não têm casa. Em muitas situações, essas pessoas preferem seguir nas ruas, morando em becos, viadutos, portarias e onde mais for possível. “Eu prefiro a rodoviária, melhor que ficar no albergue. Aqui tem luz, tem câmera filmando a gente, é menos perigoso”, diz Marlon Alves, 45 anos, que mora há cinco anos ao lado das colunas de concreto da rodoviária da capital federal. Como muitos daqueles que vivem na mesma situação, ele não tem ideia dos riscos do coronavírus. “Sei não. As pessoas passam, usando máscaras. Deve ser mais uma gripe.”

Rubens da Silva tem 53 anos e é morador de rua em Brasília Foto: André Borges/Estadão

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Marlon Alves é uma das cerca de 3 mil pessoas que dormem nas ruas da capital federal. Em Belo Horizonte, 7 mil não têm lar. No Rio de Janeiro, há 15 mil pelas calçadas. Em São Paulo, que viveu uma explosão de pessoas em situação de rua nos últimos anos, há 24 mil habitantes sem lar, largados pelas ruas da cidade.

O pedido persistente para que as pessoas se recolham em suas casas para evitar a propagação da covid-19, saindo para a rua somente em situações de extrema necessidade, deixou milhares de pessoas lançadas à própria sorte. Ao abandono, soma-se agora um inimigo invisível. É grande o risco de muitos virem a óbito pelo coronavírus, e sequer entrarem para as estatísticas alarmantes da doença.

Tentativas. Alarmadas com o prenúncio de uma catástrofe, as cidades se mobilizam às pressas para fazer alguma coisa. Dona da maior população de rua do País, a cidade de São Paulo tenta dar um jeito de frear uma nova tragédia sobre a que já existe. Pias serão instaladas no centro da cidade, onde se concentram o maior número de pessoas nesta situação para que possam fazer higienização como forma de prevenção.

Marlon Alves tem 45 anos e é morador de rua em Brasília Foto: André Borges/Estadão

A prefeitura, por meio da Secretaria Municipal de Saúde, aumentou as abordagens àqueles que vivem em situação de rua para um primeiro atendimento. Se for identificado um caso suspeito, é feita uma pesquisa sobre onde a pessoa dorme e circula, para encontrar possíveis novos suspeitos. A pessoa é encaminhada à unidade de saúde para atendimento e diagnóstico e, em caso de maior gravidade, o (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) Samu é acionado.

São Paulo possui 17,2 mil vagas em abrigos, para uma população de mais de 24 mil pessoas em situação de rua. Nos abrigos, estão afastando as camas, para manter a distância mínima de dois metros entre cada morador. Ao Estado, o governador João Dória disse que não faltará assistência. “Não seremos omissos nem levianos com a população de rua e estaremos ao lado das prefeituras no acolhimento e amparo de quem mais precisa”, disse.

No Rio, o Sambódromo, que há menos de um mês recebia milhares de pessoas para ver o espetáculo das escolas de samba, poderá ser abrigo para moradores de rua. O Estado fluminense também avalia uma forma de alocar as pessoas em hotéis populares, com o uso de recursos do fundo de combate à pobreza. Os números iniciais apontam para cerca de 400 vagas de hotéis. Outra medida prevê a distribuição de 2 milhões de kits de comida e higiene, só que ainda não sabe como isso será feito. Pensaram em usar algum cadastro social para facilitar a distribuição e evitar aglomerações, mas há muita gente que não está dentro de cadastro nenhum e que vive nas ruas.

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Emerson Soares tem 56 anos e corre risco nas ruas de Brasília Foto: André Borges/Estadão

Em Brasília, o governo começou a catalogar a população em situação de rua. Esse levantamento terminou na semana passada e identificou, até o momento, 1.851 cidadãos. Os idosos são prioridade. A primeira medida tomada foi verificar a existência de algum vínculo familiar ou comunitário, para que seja feita uma intervenção, com o propósito de que o idoso retorne à família de origem. “Não havendo um lar de referência, a pessoa será encaminhada para uma das cerca de 20 unidades de acolhimento do DF”, informou o governo do Distrito Federal. Um serviço especializado em abordagem social, que realiza o atendimento diretamente nas ruas, tem procurado informar as pessoas sobre os riscos da doença e distribuído máscaras.

Na Esplanada dos Ministérios, sentado na calçada, Marlon Alves ajusta uma máscara suja de fuligem em seu rosto. “Falaram para eu usar. Vai ficar tudo bem. Não tenho medo, não.”

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