Técnica útil contra o câncer amadureceu na pandemia

RNA mensageiro, usado nas vacinas contra a covid-19, poderá resultar em terapias oncológicas mais personalizadas

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Por Edison Veiga
Atualização:
Getty Images Foto:

A urgência do desenvolvimento de vacinas contra a covid-19, dada a gravidade da pandemia, desencadeou uma verdadeira corrida científica desde o início de 2020. O que fez com que os principais laboratórios do mundo optassem por trilhar caminhos mais ousados. Uma dessas tentativas levou ao surgimento de imunizantes baseados em RNA mensageiro (mRNA), algo inédito para a humanidade. 

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As drogas desenvolvidas pela Pfizer/BioNTech e pela Moderna estão nesse grupo e, como elas se mostraram eficientes, pesquisadores já vislumbram outros usos para a metodologia. “A tecnologia de mRNA vem evoluindo muito desde que foi proposta. No início, vários cientistas não acreditavam no seu uso prático porque as moléculas de RNA são muito frágeis. Grande parte das apostas era sobre o uso de DNA, uma molécula mais resistente”, explica o biólogo molecular Francisco Aragão, pesquisador da Embrapa.

Mas a evolução das pesquisas, segundo o cientista, deixou as moléculas de RNA mais protegidas. Elas passaram a ser envelopadas por estruturas lipídicas esféricas e, assim, puderam chegar aos alvos celulares de forma mais precisa, sem se desmanchar no caminho. “Com nanoestruturas, agora, será possível melhorar ainda mais as moléculas de RNA, o que vai permitir direcioná-las para alvos específicos no corpo, além de também encontrar genes-alvo mais apropriados”, afirma Aragão.    

De acordo com Carlos Menck, professor da Universidade de São Paulo (USP), a tecnologia baseada em RNA mensageiro vem mostrando ter muito futuro. “Na utilização como vacina, é uma tecnologia que pode ser aplicada contra quase qualquer tipo de agente patogênico”, afirma. Para o cientista, o fato de ser possível, agora, desenvolver vacinas mais genéricas é algo muito positivo. “Eventualmente, poderá ser criado um processo de vacinação contra qualquer organismo. Isso vale contra as variantes do próprio coronavírus, apesar de que procuro ter cuidado quando alguns pesquisadores falam ‘em vacinas para todos os coronavírus’”, defende Menck.

No caso da oncologia, a tecnologia que acaba de amadurecer por causa da pandemia poderá deflagrar novas terapias. Estudos sobre o tema, inclusive, vêm desde muito antes de o coronavírus passar a assustar o mundo. “A tecnologia de vacinas baseadas em mRNA é capaz de ativar respostas imunológicas envolvendo linfócitos citotóxicos, ou seja, linfócitos T, com a capacidade de reconhecer células infectadas ou tumorais”, explica o biólogo Luis Carlos de Souza Ferreira, professor na USP. “Portanto, o foco da pesquisa nos últimos quatro anos foi voltado para o tratamento de diferentes tipos de câncer.”

O responsável pelo laboratório de desenvolvimento de vacinas do Instituto de Ciências Biomédicas da USP relata que em breve seu grupo vai publicar dados inéditos sobre pesquisas experimentais feitas com vários tipos de vacina de mRNA no tratamento de tumores causados pelo HPV.

O conceito científico por trás disso, explica o microbiologista, é fazer com que as moléculas de mRNA sejam capazes de alterar o desenvolvimento das células tumorais, tornando-as mais suscetíveis a quimioterápicos. “Em princípio, pode funcionar melhor em tumores sólidos, como câncer de pulmão, de ovário, de cólon”, afirma Menck. “Mas não vai ser de uma hora para outra que isso estará disponível. Se fosse simples assim, já estaria feito.”

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O fato de a tecnologia do mRNA passar a ser considerada muito atrativa para o desenvolvimento de terapias contra o câncer tem algumas explicações, segundo Aragão, da Embrapa. Uma delas é o fato de gerar uma ótima resposta celular, além de permitir um tratamento mais personalizado. “Uma vez que se pode gerar moléculas de mRNA diferentes de forma mais ágil, é possível ter tratamentos com moléculas diferentes de pessoa para pessoa”, afirma o biólogo. “Ou seja, é um tratamento que pode ser muito flexível porque mutações específicas para cada paciente podem ser identificadas e tratadas de forma individualizada”, diz.

Como também todos os tumores carregam algum tipo de mutação, é uma tecnologia que, em princípio, pode ser útil contra todos eles. “Com o avanço da entrega dessas moléculas, diferentes tipos de cânceres poderão eventualmente ser tratados, desde que se tenham estratégias definidas para que a molécula chegue às células cancerígenas de forma eficiente.”

Duas décadas na ‘gaveta’ e, enfim,o sucesso

Detentora da patente da tecnologia de mRNA nos Estados Unidos, a bioquímica húngara Katalin Karikó é uma cientista insistente. Pelo menos desde os anos 1990 ela vem pesquisando o uso médico do RNA mensageiro como plataforma — mas antes da pandemia de covid-19, seus projetos sempre eram engavetados.

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Ela colecionou muitos nãos até conseguir botar em prática sua ideia — sintetizar o mRNA em laboratório para que ele seja capaz de dar instruções específicas para as células agirem. Na vacina contra covid-19, o mensageiro faz com que as células produzam uma proteína do vírus, ativando o sistema imunológico.

Embora na teoria o método parecesse ótimo, havia dois obstáculos. O primeiro é que esse RNA sintético era extremamente frágil. Seria destruído pelas defesas naturais do organismo, provavelmente antes de atingir as células-alvo. O segundo ponto é que esse mecanismo “no lugar errado” poderia representar um risco: uma toxicidade aos pacientes. Testes com animais causavam altas inflamações, levando cobaias à morte.

Karikó trocou a Hungria pelos Estados Unidos em 1985, em busca de condições melhores de pesquisa. A resistência da comunidade científica não acabou. Na Universidade Temple, na Filadélfia, ela chegou a ser ameaçada de deportação por um de seus chefes. Nos anos 1990, na Universidade da Pensilvânia, foi rebaixada de cargo como punição pela insistência no tema.

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No início da década de 2000, quando já trabalhava com o imunologista Drew Weissman, descobriu exatamente qual nucleotídeo causava a reação inflamatória aguda. Conseguiram substituí-lo por um equivalente sintético neutro. A proteção para que o mensageiro não fosse destruído no lugar errado foi resolvida com um “envelopamento” — o mRNA foi colocado dentro de uma cápsula de lipídios.

A técnica, contudo, ficou restrita a discussões acadêmicas e publicações científicas até a década de 2010, quando duas biotechs decidiram botá-la em prática: a BioNTech e a Moderna. Karikó foi contratada pela primeira. E foi assim que, com a pandemia, ela pôde desenvolver uma vacina baseada em mRNA.

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