Tratamento precoce racha organizações e faz médicos irem ao Ministério Público contra o CFM

Para o Conselho Federal de Medicina, diante da falta de alternativas terapêuticas, cabe ao médico, com o paciente, decidir que remédio usar. Esse, porém, não é o entendimento de outras entidades científicas, que destacam a ineficácia e sugerem banir o chamado kit covid 

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Por Fabiana Cambricoli
4 min de leitura

A adoção do chamado tratamento precoce da covid-19, que reúne medicamentos ineficazes ou ainda sem evidência contra a doença, já provoca racha em entidades médicas e levou alguns profissionais a entrarem com representação no Ministério Público Federal contra o Conselho Federal de Medicina (CFM).

Embora diversos estudos científicos já tenham mostrado que drogas como a hidroxicloroquina e a azitromicina não funcionam contra o coronavírus, médicos de todo o País continuam a prescrevê-las, geralmente combinadas com outras medicações e vitaminas em uma composição que ficou conhecida como kit covid. A distribuição do kit passou a ser adotada por algumas prefeituras.

Caixas com carregamento de ivermectina Foto: PRF

A prescrição desses remédios tem aval do CFM, que, em abril de 2020, emitiu parecer autorizando os médicos a indicarem hidroxicloroquina e azitromicina. Na época, ainda não havia evidências definitivas sobre a eficácia das drogas.

Um ano depois, porém, com vários estudos demonstrando que elas não reduzem o risco de agravamento da doença, o conselho mantém o parecer, apoiado no argumento da autonomia médica. Para o CFM, diante da falta de alternativas terapêuticas contra a doença, cabe ao médico, com o paciente, decidir que remédio usar.

Esse, porém, não é o mesmo entendimento de outras entidades médicas. Em março, a Associação Médica Brasileira (AMB) divulgou documento assinado por dezenas de sociedades científicas e associações federadas em que defendia o banimento do uso desses fármacos. Por iniciativa própria, a AMB colocou como signatária todas as suas 81 associadas, mas, após a divulgação do documento, 15 delas pediram para ter seus nomes retirados do documento.

“Incluímos todas por serem afiliadas da AMB e porque queríamos dar protagonismo a elas, achando que todas iriam aderir. Esqueci de algo fundamental: nosso País está polarizado e tem diretores de entidades que foram contrários. Olhando agora, não deveríamos ter feito dessa forma”, afirmou na época César Eduardo Fernandes, presidente da AMB, reconhecendo o racha na categoria.

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Entre as sociedades que se manifestaram publicamente contra a carta da AMB estão a Associação Brasileira de Psiquiatria e a Associação Nacional de Medicina do Trabalho. Em nota, a última defendeu que a relação entre médico e paciente é “personalíssima, fundamentada na confiança, empatia e respeito, e o tratamento é prerrogativa do médico assistente, como ocorre em qualquer outra doença”.

O Estadão apurou que o episódio criou conflitos mais calorosos entre as entidades. Alguns diretores de sociedades científicas que ainda apoiam o “tratamento precoce” acusaram a AMB de estar sendo influenciada por razões políticas. “Isso foi por causa do grupo de esquerdopatas que está no comando da associação”, escreveu um dos diretores em um e-mail.

O presidente do CFM, Mauro Ribeiro, disse ao Estadão que a divergência foi um exemplo da divisão observada entre os médicos e que nenhuma entidade “é detentora do saber”, em alusão à postura da AMB.

Omissão

Para além das brigas das entidades, médicos inconformados com a manutenção da postura do CFM sobre a prescrição dessas drogas decidiram agir por conta própria. Foi o caso do cardiologista Bruno Caramelli, professor associado da Faculdade de Medicina da USP.

Sozinho, ele entrou com representação no MPF-SP, pedindo aos procuradores a abertura de inquérito “para apurar a responsabilidade civil, administrativa ou penal da diretoria do CFM” quanto ao tema.

Na peça jurídica, o médico classifica o posicionamento do conselho de “omisso e grave nas providências que lhe caberiam tomar contra a disseminação da falsa ideia de existência de tratamento precoce eficaz contra a covid-19”.

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À reportagem, o médico afirmou que decidiu entrar com a representação pela preocupação de que a crença no "tratamento precoce" esteja levando a população a não seguir outras orientações sanitárias. “Não dava para ficar parado. Essa suposta bala de prata está tirando a concentração das pessoas para fazerem o isolamento e seguirem outras medidas de proteção.” O cardiologista também organizou um abaixo-assinado online pedindo que o CFM condene o “tratamento precoce”.

Após a representação, outros 29 médicos souberam da iniciativa de Caramelli e se juntaram ao colega no pedido, como explica a advogada e juíza federal aposentada Cecília Mello, representante do grupo. “Fizemos uma adesão desses médicos naquela mesma representação, levando também fatos novos que surgiram , como relatos de efeitos colaterais dessas medicações”, comenta ela.

O MPF afirma que ainda está em fase de apuração de fatos para decidir se instaura ou não o inquérito. O CFM disse que a sua coordenação jurídica “não acusa, até o momento, a chegada de uma representação” do MPF-SP sobre esse assunto.

MP de São Paulo investiga situação desde janeiro

Antes mesmo de receber a representação de médicos contra o CFM, o Ministério Público Federal em São Paulo já apurava a conduta do órgão em relação ao “tratamento precoce”.

Em 20 de janeiro, dentro de um procedimento de acompanhamento de política pública relacionado à covid-19, os procuradores paulistas enviaram ofício dirigido ao presidente do CFM, Mauro Ribeiro, questionando, entre outros pontos, se o órgão, diante de novas evidências científicas, pretendia rever o parecer de 2020 que autoriza a prescrição de hidroxicloroquina e azitromicina.

Sem receber retorno do conselho às perguntas, o MPF reenviou o questionamento em 12 de fevereiro e teve como resposta do CFM o argumento da autonomia médica. O MPF voltou a enviar ofício em 30 de março com novas evidências, desta vez de possíveis danos causados pelas medicações e deu 15 dias para a resposta, que ainda não foi enviada.

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