Turismo de vacina: brasileiros viajam a EUA e Rússia para antecipar imunização contra covid

Estados Unidos, onde exigências para aplicar doses em estrangeiros têm sido flexibilizadas, são o destino mais procurado. Agências europeias também oferecem pacotes de viagem para cidades russas

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Por Gonçalo Junior
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Diante de uma campanha de vacinação marcada pela escassez de imunizantes contra covid-19, brasileiros têm recorrido ao “turismo da vacina”, ou seja, viajam até um país que ofereça doses a estrangeiros, passeiam um pouco e voltam. O destino mais comum são os Estados Unidos, onde as exigências para vacinação têm sido flexibilizadas. Agências europeias já oferecem pacotes de viagem para a Rússia que incluem, além de passeios em Moscou e São Petersburgo, a vacinação com a Sputnik V – ainda não aprovada pela Anvisa no Brasil.

Pessoas formam fila para receber vacina em posto em Miami, nos Estados Unidos Foto: David Santiago/Miami Herald/AP

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O engenheiro de software Sérgio Ricardo, de 27 anos, e a fisioterapeuta Thais Fernandes, de 31, moradores de Juiz de Fora (MG), decidiram mudar o roteiro da viagem para Punta Cana, na República Dominicana, quando descobriram a expressão “turismo de vacinas”. Eles ampliaram a estadia de 10 para 16 dias e cumpriram a quarentena obrigatória (viajantes que saem do Brasil não podem viajar diretamente para os Estados Unidos) em fevereiro.

Deu certo. Na Flórida, tomaram a vacina na Miami Dade College North Campus, escola que abriga um posto improvisado de vacinação. Mostraram apenas os passaportes para conseguir a imunização da vacina Johnson & Johnson, oferecida em dose única. Depois de mais quatro dias em Orlando, o casal voltou ao Brasil.

A funcionária pública Rubia, que prefere se identificar só com o primeiro nome, tem 54 anos e mora no Rio. Ela conseguiu uma licença no trabalho para cuidar do filho, que mora em Orlando, na Flórida, e que havia se infectado pelo coronavírus. Ele é brasileiro, mas tem cidadania americana por ter servido o Corpo de Fuzileiros de 2013 a 2016. A viagem dela foi em março.

Depois de afirmar que morava com ele, Rubia agendou a vacinação na rede de farmácias CVS – nos EUA, as vacinas também são aplicadas nesses estabelecimentos. Ela já recebeu as duas doses da vacina da Pfizer. E se sentiu aliviada. Não queria esperar a vacinação no Brasil. Por lá, ficou só dez minutos na fila.

Apenas em janeiro, o Departamento de Saúde da Flórida reportou cerca de 52 mil vacinados identificados como pessoas "fora da região”, ou seja, moradores de outros Estados americanos ou estrangeiros. Em Nova York, estima-se que cerca de 25% das doses alocadas para a cidade foram administradas em não residentes.

“É possível identificar um movimento de turistas em torno das vacinas”, diz o advogado Felipe Alexandre, especializado em Direito Imigratório e que tem escritórios da AG Immigration em três cidades americanas. Segundo ele, os principais grupos de viajantes em busca de imunizantes são brasileiros e mexicanos. A associação de empresas de turismo do México informa que as viagens para os EUA com o objetivo de tomar o imunizante aumentaram 70% no último mês.

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Parte dos Estados americanos estáflexibilizando as exigências para vacinação de estrangeiros. Foto: AP Photo/Wilfredo Lee

O movimento já é identificado pela comunidade brasileira, principalmente em Orlando e Miami. “Isso tem acontecido sim. A gente percebe pessoas de outros países, inclusive brasileiros”, diz a empresária e influenciadora digital Carmem Pimpinati.

O turismo de vacinas ainda não está na prateleira das agências brasileiras. Conforme a Associação Brasileira de Agentes de Viagem (ABAV), o movimento não passa pela cadeia produtiva do turismo, como operadoras e agências, mas sim pela iniciativa individual dos consumidores. O Consulado Brasileiro em Miami afirma que não tem como identificar eventual aumento da procura de vacinas por turistas.

Com o avanço da vacinação nos Estados Unidos, as regras estão mais flexíveis em alguns Estados – a estratégia de distribuição e imunização é determinada localmente. Desde 30 de abril, maiores de 16 anos podem se vacinar na Flórida sem apresentar comprovante de residência. Basta dizer que vivem ou prestam serviço no Estado - revisão de uma regra imposta em janeiro.

O Alasca anunciou que, a partir de 1º de junho, todos os visitantes que quiserem ser vacinados poderão fazê-lo logo na chegada, já nos aeroportos. É uma estratégia para incentivar a retomada do turismo. Arizona, Louisiana, Texas, Califórnia e Nevada também liberam doses para não residentes. Já Califórnia, Nova York e Texas passaram a exigir comprovantes de residência na hora da vacinação. Dentro dos próprios Estados, a vacinação de turistas não é uniformizada. Postos de saúde separados por poucos quilômetros adotam políticas diferentes. 

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Pacientes com comorbidades têm preferência. Na Flórida, a comprovação é feita por formulário do Departamento de Saúde assinado por um médico. A VIP Clinic, clínica médica conhecida pela comunidade brasileira em Orlando, oferece atendimento online ou presencial para quem precisa de atestado médico por US$ 90. Artistas, como a atriz Nívea Stelmann, de 46 anos, a influencer Bella Falconi, de 35, o cantor Kiko, do KLB, de 41, além do humorista Leandro Hassum, de 47, registraram o momento da vacinação nos Estados Unidos nas redes sociais.

Pacientes fora deste grupo de risco tentam a sorte na “xepa”, apelido brasileiro para a sobra diária de doses. Essa oferta é disputada por pessoas que formam filas enormes do lado de fora dos locais de vacinação. Mesmo quem não morava lá acabava dando um jeitinho. Os estrangeiros burlavam a necessidade do comprovante de residência apresentando contas bancárias com endereço nos Estados Unidos ou contratos temporários de aluguel pelo site Airbnb que posteriormente eram cancelados.

Discussão ética

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A prática desperta uma discussão ética: turistas podem se vacinar antes da população local? A resposta depende do local. No Chile, não. O país andino anunciou que não irá vacinar estrangeiros sem visto de residência. A medida foi tomada após reportagem da TV peruana exibir a venda de pacotes de viagens para o Chile, com a promessa da imunização, por cerca de R$ 5 mil.

Pedro, cantor e produtor musical brasileiro de 36 anos, que mora em São Paulo, mas tem residência em Orlando, afirma que não fez nada errado ao vacinar nos Estados Unidos. Após cinco horas em uma fila de imunização no hotel Sheraton Vistana Resort, em Orlando, ele tomou a 1ª dose da vacina da Pfizer. A 2ª será esta semana.

“Não me passou pela cabeça estar fazendo algo errado. Entendo a crítica dos americanos para quem 'pega' a vacina deles. Infelizmente, nós, brasileiros, muitas vezes precisamos nos voltar para outros países para conseguirmos coisas que deveríamos conseguir com mais facilidade em nosso País. É o caso da vacina. Essas filas de vacinação são para as sobras. Não acho que tirei o lugar de ninguém”, diz o músico, que também prefere não se identificar.

“Não acho que seja crime querer cuidar da própria saúde. Infelizmente, vivemos em um país onde os governantes não ajudam. No dia da vacinação, a fila não era formada só por brasileiros. Tinha gente de vários países. Acho que o povo americano não condena quem tenta se vacinar lá. Não fomos para ficarmos ilegais ou para roubar o emprego de alguém. Fomos tomar a vacina e já voltamos”, opina o engenheiro Sérgio Ricardo.

No caso dos brasileiros, há uma dificuldade adicional. Desde maio de 2020, o governo americano proibiu a entrada direta de passageiros procedentes do Brasil, a não ser cidadãos americanos, residentes no país ou que viajem por motivos familiares, como no caso de Rubia. Consulados e a Embaixada americana no Brasil estão fechados para solicitações de vistos. Na semana passada, foi aberta outra exceção, para estudantes procedentes do Brasil e matriculados em cursos nos EUA que comecem a partir de 1º de agosto.

Quem não se enquadra nestas exceções precisa cumprir quarentena de 14 dias em outro país sem restrições antes de embarcar para os EUA. México e República Dominicana são opções cada vez mais procuradas. Foi o que aconteceu com o Pedro, que teve que passar 20 dias em Cancún, no México, de dezembro a janeiro deste ano, antes de entrar nos EUA.

Passeios por Moscou e duas doses da Sputnik V

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Ao menos duas agências europeias – uma norueguesa e uma russa - oferecem pacotes turísticos para a Rússia, com passeios por Moscou e São Petersburgo, no meio da aplicação das duas doses da Sputnik V, imunizante russo que ainda não aprovado pela Anvisa. Registrada em 62 países, a vacina ainda não passou pelo crivo das agências regulatórias mais tradicionais, como a americana, a europeia e a japonesa. 

Pelo menos duas agências europeias – uma norueguesa e uma russa - oferecem pacotes turísticos para a Rússia, com passeios por Moscou e São Petersburgo Foto: AP Photo/Alexander Zemlianichenko

Os pacotes são planejados exatamente de acordo com o intervalo entre as duas doses. A viagem pode ser de 23 dias, com vacinação no primeiro e no último dias, com passeios pelas cidades russas, por R$ 18 mil. O pacote mais barato pode ser feito de duas viagens curtas de 4 dias cada uma, espaçadas por 20 dias, no valor de R$ 11 mil.  Consultada pelo Estadão, a embaixada russa no Brasil não se manifestou sobre a oferta das vacinas a turistas estrangeiros.

As agências oferecem assistências na obtenção dos vistos, máscaras, álcool em gel, transferências para o posto de vacinação, hospedagem em hotel quatro estrelas em Moscou, além de uma consulta médica com tradutor (inglês ou russo). As passagens aéreas não estão incluidas. 

O empresário brasileiro Henrique Bordallo, de 36 anos, que dirige a Bolshoi Tour, empresa de turismo receptivo na Rússia, afirma que vem sendo consultado com certa frequência sobre a possibilidade de vacinas para estrangeiros. “Recebo consultas principalmente do Brasil e Angola”, diz o administrador que vive na Rússia há sete anos.

A exemplo do que acontece com os Estados Unidos, a Rússia  faz restrições a alguns viajantes. Hoje, os principais países com fronteiras abertas para a Rússia são Reino Unido, Peru, Suíça, Egito, Cuba, Japão, Alemanha, entre outros. Com isso, é preciso fazer a quarentena nesses locais antes de entrar na terra de Lênin e Stálin. 

Israelenses no exterior viajam para país com vacinação-modelo 

Cidadãos israelenses que vivem no exterior também ajudam a tornar mais consistente a expressão “turismo de vacinas”. Muitos decidiram viajar só para receber as duas doses da Pfizer no país cujo programa de vacinação é o mais avançado do mundo, com 62,5% da população já vacinados com a primeira dose. 

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O programa não é aberto para turistas. Para se vacinar em Israel, é preciso seguir critérios. A entrada de turistas foi suspensa durante a pandemia e só será liberada no dia 23 de maio, apenas para pessoas já vacinadas. Na última quarentena, neste ano, o governo só estava liberando a autorização de entrada para um número limitado de cidadãos. Apenas no início de março a entrada foi liberada para todos os que têm cidadania israelense.

Vacinas para turistas na Rússia

World Visitor

Pacotes: duas viagens de quatro dias a Moscou (destino recomendado) ou uma viagem de 23 dias. Preços: viagens curtas (R$ 10,5 mil) a longas (R$ 18 mil) Atrações: hospedagem testes PCR, passeios por Moscou e consulta médica com tradução

Cosmos Travel

Pacotes: duas viagens de três dias ou uma viagem de 21 dias Preços: uma viagem longa sai por R$ 19 mil ou duas viagens pelo período de três dias de R$ 9 mil Atrações: hospedagem, testes PCR, passeios por cidades russas, consulta médica com tradução e acompanhante até o posto de vacinação

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