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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Um conto de carnaval

Recompensas para o eu do futuro não deixam o eu do presente muito entusiasmado

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Atualização:

Falar de Natal em pleno carnaval pode espantar alguns leitores. Mas os que seguirem firmes entenderão a lógica – ainda que alguns julguem tortuosa – que move o articulista. Em meio a dívidas, investimentos e futuro, a presença incidental da festa cristã nos ajudará a entender um pouco da festa pagã.

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Em 1843, o escritor inglês Charles Dickens estava endividado. As vendas do folhetim Martin Chuzzlewit não iam bem e sua mulher estava grávida do quinto filho do casal. Em outubro daquele ano, Dickens passou então a escrever uma história natalina para melhorar o orçamento doméstico, e em seis semanas completou Um Conto de Natal. A primeira edição esgotou em menos de uma semana e até hoje o livro nunca saiu de catálogo. A história de Scrooge, o velho avarento que na noite de Natal é visitado pelos espíritos do passado, do presente e do futuro tornou-se imediatamente clássica por tocar em temas que vão muito além dos festejos natalinos.

Mas o que nos interessa no momento é a transformação que Scrooge experimenta após ser confrontado com sua história, sobretudo com seu futuro. Ele implora a um dos fantasmas que lhe dê outra chance, prometendo comportar-se de forma diferente a partir de então. “Não serei o homem que teria sido se não houvesse passado por essa experiência.” Como Scrooge, se pudéssemos viajar para o futuro e ver de perto as consequências de nossas escolhas presentes certamente mudaríamos. Parafraseando o avarento, não seríamos as pessoas que seremos se tivéssemos essa experiência.

Infelizmente nosso cérebro não é muito bom para compreender que o eu do futuro e o eu do presente são a mesma pessoa. No dia a dia, experimentamos uma descontinuidade entre elas – como quando ficamos assistindo TV até tarde, achando que o cansaço de amanhã não é problema nosso. E isso não ocorre apenas com punições. Recompensas para o eu do futuro também não deixam o eu do presente muito entusiasmado. É o famigerado desconto temporal.

Decidir é pesar custos e benefícios, conscientemente ou não. Mas tanto custos como benefícios parecem mais intensos no agora do que no porvir. Por exemplo: se tivesse de escolher, preferiria levar um tapa hoje ou dois tapas em cinco anos? Tendemos a escolher os dois tapas, pois eles são tão distantes que parecem doer menos – além de sentirmos que o castigado será outra pessoa, não nós. Mas, quando chegar o dia, olharemos para trás morrendo de raiva do eu presente. “Seu burro! Quando você irá aprender que nós somos a mesma pessoa?” 

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O mesmo se dá com recompensas. Diante da opção de receber um dinheiro extra o que lhe parece mais desejável, R$ 100 já ou R$ 200 em três meses? A maioria de nós prefere menos dinheiro imediatamente, mesmo que não precise imediatamente dele. Os pesquisadores da área adoram brincar com esses cenários, variando o tamanho do castigo ou do prêmio, estendendo ou encurtando o tempo, mas a ideia é sempre a mesma. O agora é mais valorizado e, com perdão do trocadilho, é mais presente.

As implicações desse fenômeno são muitas. Desde a negligência com as reservas financeiras para aposentadoria, gastando-se hoje o que poderá fazer falta amanhã, por exemplo, até a dificuldade em fazer dieta. Queremos tanto o prazer do bolo de chocolate como o prazer de emagrecer. Mas como o prazer de perder peso é para mais tarde e o do bolo é para já, acabamos não fazendo as escolhas que sabemos saudáveis.

E assim chegamos ao carnaval. Por esses dias tenho visto muitas mensagens de brasileiros lamentando o fato de que multidões se reúnem para cantar, dançar e beber, mas não para mudar a realidade do País. 

Se empregássemos a mesma energia carnavalesca para pressionar governos e governantes, lutar contra a corrupção, exigir educação, saúde e justiça, o Brasil seria diferente. Pois é, seria. Mas demoraria. Então, por maiores que sejam os benefícios desse movimento, eles sempre parecem pálidos diante do prazer imediato da folia.

Mudar isso só se um espírito dos carnavais futuros nos mostrasse as consequências de nossas escolhas presentes. Tenho até medo de pensar no que veríamos.

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* É PSIQUIATRA

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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