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Opinião|Vão faltar respiradores

O problema é que o governo nem sequer sabe quantos vai precisar

Atualização:

Nas próximas semanas vamos ser inundados de noticias sobre a falta de respiradores para tratar os casos graves de coronavírus em São Paulo. Esse é um problema que todos os países estão enfrentando e conosco não vai ser diferente. O problema é que o governo nem sequer sabe quantos respiradores vai precisar. Assim como no caso dos testes diagnósticos, os governos estão sendo muito lentos, estamos condenados a responder aos fatos em vez de nos anteciparmos. Vou tentar explicar o problema dos respiradores e como é possível calcular quantos vão faltar.

Em Barcelona, na Espanha, um técnico trabalha na fabricação de componentes para um respirador Foto: Alejandro García/EFE

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Quem já foi operado sob anestesia geral usou um respirador. Durante a anestesia ficamos incapazes de aspirar o ar para o interior de nossos pulmões. Por isso os médicos introduzem um pequeno cano em nossa boca que chega até a traqueia. Esse duto leva o ar aos nossos pulmões. É desconfortável, mas normalmente já estamos dormindo quando isso é feito e não lembramos depois. Esse tubo está ligado ao respirador, que não passa de uma bomba de encher pneu de bicicleta altamente sofisticada. Ele bombeia uma quantidade predeterminada de ar para o interior de nossos pulmões com um fluxo e uma pressão que pode ser regulada pelo médico. O ar bombeado pode ser enriquecido com oxigênio.

Após o ar ter sido bombeado, uma válvula se abre e o ar é expelido por nossa caixa torácica que funciona como um balão que se esvazia quando abrimos o bocal. O princípio é simples, mas esses equipamentos são muito sofisticados e precisam ser operados por pessoas muito bem treinadas. Toda sala cirúrgica tem um equipamento desse e todos os hospitais têm vários desses equipamentos para serem usados em pacientes com os mais diferentes problemas respiratórios, normalmente em leitos de UTI. Tratar casos graves de pneumonia é um dos usos desse equipamento e a covid-19 é uma forte pneumonia viral. Durante a pandemia de coronavírus, é sempre bom lembrar, a maioria dos contaminados com certeza não vai nem sequer passar perto de um desses equipamentos, pois 80% dos casos não necessitam ser tratados em hospitais e se recuperam sozinhos em casa. Dos 20% que precisam ser internados, muitos não precisam de auxílio respiratório, outros precisam somente de um pouco de oxigênio que pode ser liberado logo na entrada do nariz, outros tantos podem ser tratados com aparelhos que auxiliam a respiração sem que seja necessário inserir um tubo na traqueia (uma máquina parecida com as usadas em casa por pessoas que têm dispneia do sono). Mas, infelizmente, um pequeno número de pacientes, algo como 5% ou 6% de todos os infectados pelo vírus, ficam com seu pulmão tão alterado que para conseguir respirar (o que significa manter níveis adequados de oxigênio no sangue) precisam ser colocados nesses respiradores até se recuperarem.

Apesar de esses aparelhos existirem em todos os hospitais, e uma fração muito grandes dos infectados não necessitar desses aparelhos (por volta de 95%, insisto), quando o número de infectados é muito grande, como ocorreu na China, e está acontecendo na Itália e na Espanha, e muito provavelmente vai acontecer em São Paulo, o número desses aparelhos pode não ser suficiente para tratar todos os pacientes. Esse é um dos fatores que leva ao colapso dos hospitais no pico da epidemia. Portanto, é preciso calcular quantos vão faltar em cada hospital ou região do País e se preparar comprando um número maior. Mas isso leva tempo. Se a produção de luvas e máscaras pode ser aumentada rapidamente, com respiradores a história é diferente. Infelizmente, se houver dois pacientes que precisam de respiradores e somente existir um respirador, um dos pacientes vai morrer.

O problema que vivemos hoje no Brasil é que o governo ou não tem uma estimativa de quantos respiradores vão ser necessários em cada hospital ou região ou se recusa a mostrar esse número para não deixar a população preocupada. Mas, sem esse número, como podemos ajudar a resolver o problema? Eu não vou fazer aqui as contas, mas posso descrever como essa conta pode ser feita e tem sido feita em todos os países desenvolvidos.

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O primeiro passo é construir possíveis cenários para o pico da pandemia em cada região. Ou seja, precisamos de um gráfico onde o número de casos detectados fica no eixo vertical e a data no eixo horizontal. A maioria dos países trabalha com três cenários, um otimista, com número menor de casos, um médio e um pessimista. Imagine o caso de São Paulo com 11 milhões de habitantes. Um possível cenário é que 1% da população seja contaminada ou seja 110 mil pessoas. Dessas, imagine que 5% precise de respiradores, ou seja 5,5 mil pessoas. Mas essas pessoas não vão precisar ao mesmo tempo. No inicio da curva poucos pacientes precisam de respiradores, no pico da curva muitos vão precisar e no fim da curva esse número cai. Parece simples, mas tem um complicador. Cada pessoa fica no aparelho entre uma e três semanas até se recuperar. Ou seja, os respiradores são tomados logo quando o número de casos está aumentado e ficam ocupados por semanas por essa pessoa. Assim, nesse cenário hipotético, precisaríamos de menos de 5,5 mil respiradores, mas o número exato tem de ser calculado cuidadosamente a partir dessas curvas (os chamados cenários). Aí essa conta tem de ser repetida para o caso de 10% ou 15% da população ser infectada, ou outro cenário que o governo acreditar que pode ocorrer. Feitos os cenários e calculado o número de respiradores necessários, o governo tem de descobrir quantos respiradores já existem (aparentemente já há esse dado no banco de dados do Sistema Único de Saúde). Com base nesses dados é fácil saber quantos respiradores precisam ser comprados ou colocados em funcionamento para atender à demanda. E, finalmente, isso tudo tem de ser feito para cada região do Estado de São Paulo e do Brasil.

Nenhum país do mundo parece ter o número suficiente de respiradores, se algo como 5% da população for infectada. Mas descobrir e divulgar quantos respiradores precisamos é tarefa urgente do governo. Só com esse número a sociedade pode ajudar o governo a se organizar. Nesta semana, grandes doadores se cotizaram para comprar respiradores, mas ninguém ainda sabe se o número comprado é suficiente ou se está longe de resolver o problema.

Agora a boa notícia. O número de respiradores que precisaremos depende do número total de pacientes e como esses casos vão se distribuir ao longo do tempo. Se todos acontecerem ao longo de um mês, vai ser o caos. Se eles forem distribuídos ao longo de alguns meses, o número de respiradores necessários cai muito. E adivinhe de quem depende o número de casos que teremos? Em parte, de nós mesmos. Da nossa capacidade de nos isolarmos e de lavarmos as mãos. Ou seja, cada um de nós tem o poder e a responsabilidade de reduzir o número de pessoas que vão morrer por falta de respiradores.

Opinião por Fernando Reinach
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