Vermífugo defendido pelo governo reduz carga viral, mas não evita complicações da covid

Artigo com resultados de pesquisa financiada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações foi publicado nesta sexta sobre medicamento chamado Annita

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Por Fabiana Cambricoli
Atualização:

SÃO PAULO - Apesar de reduzir a carga viral em pacientes com covid-19, o vermífugo nitazoxanida não tem eficácia na resolução dos sintomas da doença ao final dos cinco dias de tratamento nem é capaz de evitar complicações decorrentes da infecção pelo coronavírus, mas demonstrou benefício na resolução dos sintomas após sete dias de seguimento.

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As conclusões estão em artigo que traz os dados completos do estudo financiado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovações (MCTI), cujos resultados parciais foram apresentados em uma cerimônia no Palácio do Planalto que gerou polêmica na segunda-feira, 19.

Na ocasião, o governo federal usou um gráfico de barras tirado de um banco de imagens, sem base nos dados reais da pesquisa, para ilustrar a eficácia do medicamento. No vídeo de apresentação da conclusão do estudo, um narrador afirma, ao mesmo tempo em que o gráfico é mostrado, que “o resultado comprovou de forma científica a eficácia do medicamento na redução da carga viral na fase precoce da doença".

Na data do evento, o ministro Marcos Pontes justificou que o estudo completo não havia sido apresentado pois os dados precisavam ser inéditos para a publicação em periódico científico.

Os dados completos foram publicados nesta sexta-feira, 23, na plataforma medRxiv, que reúne artigos na versão pré-print, ou seja, que ainda não foram publicados em revistas científicas nem passaram por revisão de outros pesquisadores.

Bolsonaro durante evento sobre vermífugo para covid-19 Foto: Evaristo Sa/ AFP

De acordo com informações do artigo, 392 pacientes participaram do estudo, dos quais 194 tomaram nitazoxanida por cinco dias e 198 receberam placebo. Foram incluídos na pesquisa somente doentes com quadros leves da doença, ainda nos cinco primeiros dias de sintomas. O estudo foi randomizado e duplo-cego, ou seja, os participantes foram divididos nos dois grupos de forma aleatória e nem os pacientes nem os pesquisadores sabiam quem tomou a droga e quem recebeu o placebo.

Após cinco dias de tratamento, o número de pacientes que ainda apresentavam sintomas era similar nos dois grupos: tanto o medicado quanto o placebo, o que indica que a administração da droga não fez diferença na resolução dos sintomas. Esse era o chamado "desfecho primário" avaliado no estudo, ou seja, o principal indicador de monitoramento, no qual o medicamento falhou.

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Já no seguimento dos pacientes após uma semana, considerado "desfecho secundário", o porcentual de doentes que relataram completa resolução dos sintomas foi de 78% no grupo que tomou o nitazoxanida e 57% no grupo placebo, o que, de acordo com os autores, representa diferença estatisticamente significativa.

O índice de pacientes que apresentaram exame PCR negativo após sete dias também foi maior entre o grupo medicado: 29,9% contra 18,2%. Não foram observadas diferenças significativas de ocorrência de eventos adversos entre os dois grupos.

O remédio, no entanto, não foi capaz de reduzir hospitalizações pela doença. De acordo com o artigo, dez pessoas foram internadas por agravamento do quadro, cinco de cada grupo do estudo - ou seja, a administração do medicamento também não fez diferença nesse aspecto. No grupo da nitazoxanida, inclusive, dois pacientes tiveram de ser transferidos para a UTI.

"Descobrimos que a resolução dos sintomas (tosse seca, febre e fadiga) não difere entre a nitazoxanida e o placebo após cinco dias de terapia. No entanto, no acompanhamento telefônico de uma semana, 78% no braço da nitazoxanida e 57% no braço do placebo relataram resolução completa dos sintomas. Nitazoxanida foi segura, reduziu significativamente a carga viral e aumentou a proporção de pacientes com teste negativo para SARS-CoV-2 após cinco dias de terapia em comparação com placebo. Nitazoxanida não preveniu a hospitalização”, afirmam os autores em uma das conclusões do estudo.

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Os pesquisadores defendem que, embora o remédio não tenha alcançado o desfecho primário esperado, que era a resolução dos sintomas em cinco dias, o efeito do medicamento na redução da carga viral e na melhora da doença após sete dias pode ter impacto epidemiológico ao reduzir a dispersão do vírus na comunidade.

Para especialistas que não participaram do estudo, não é possível chegar a essa conclusão somente com os dados da pesquisa. "O que foi alcançado foi benefício secundário, de redução de carga viral, mas isso não quer dizer que houve diminuição da transmissão porque não foi isso que o estudo se propôs avaliar", afirma Alexandre Naime Barbosa, chefe da infectologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).

Para a infectologista Raquel Stucchi, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a negativação mais precoce do PCR pode ser um efeito positivo se reduzir o tempo que o doente transmite o vírus, mas mais estudos são necessários. "Levando em consideração que é uma medicação barata, sem evento adverso, é um resultado interessante. O que a gente não sabe, e seria interessante se os estudos continuassem, é se essa redução da carga viral pode reduzir os sintomas pós-covid", diz.

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Barbosa afirma que os resultados não apontam para um benefício clínico da medicação. "O artigo tem qualidade científica, mas ele demonstrou que não há eficácia do medicamento para evitar casos graves e mortes. Na prática, não há diferença alguma em tomar ou não a nitazoxanida para evitar esses dois desfechos, então não faz sentido adotá-lo na prática clínica nem em indicações do Ministério da Saúde", afirmou.

Viés e limitações

Os próprios autores do estudo ressaltam no artigo que algumas características da amostra de pacientes podem ter "enviesado" o estudo a favor da nitazoxanida, como o fato de a maioria dos pacientes ser jovem e sem comorbidades, ou seja, com menor risco de complicação para a covid. Eles defendem que novas pesquisas sejam feitas para avaliar o efeito do medicamento em casos mais graves da doença.

Os autores também ressaltam uma série de limitações que devem ser consideradas ao interpretar os resultados da pesquisa. Uma delas refere-se ao fato de que os pesquisadores monitoraram somente três sintomas da doença para chegar aos resultados de acompanhamento de cinco e sete dias: febre, tosse seca e fadiga. Eles lembram que agora já se sabe que a covid pode se manifestar por outros sintomas.

Os cientistas também destacam que não foi feito acompanhamento mais longo dos participantes do estudo, por exemplo por 28 dias. Dizem ainda que nem todos os pacientes foram monitorados durante os sete dias: somente foram contatados por telefone aqueles que, no quinto dia de tratamento, ainda apresentavam algum dos três sintomas monitorados.

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