'Vírus já chegou às aldeias indígenas', diz arcebispo de Manaus

Dom Leonardo Ulrich Steiner diz que população infectada é maior no interior do que na capital do Amazonas

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Por José Maria Mayrink
Atualização:

O arcebispo de Manaus, dom Leonardo Ulrich Steiner, de 69 anos, assumiu a arquidiocese em fevereiro, no início da pandemia do coronavírus. Foi bispo auxiliar de Brasília e secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) depois de ter sido bispo-prelado de São Félix, no Araguaia (MT). Primo do cardeal dom Paulo Evaristo Arns, que presidiu sua ordenação episcopal em abril de 2005, convidou seu antecessor, dom Pedro Casaldáliga, a continuar morando em São Félix. Não conhecia Manaus, cujos habitantes o receberam bem. Dom Leonardo afirma que tem boas relações com os governos estadual e municipal, mas até agora nenhum contato com os desmatadores de florestas dos indígenas, ribeirinhos, quilombolas e perseguidos que a Igreja defende. A maioria dos doentes de coronavírus vem do interior para ser tratada na capital.

Manaus tem 30 mil índios de diferentes povos, com 91 mortos nos 29 povoados atingidos. Cinco padres foram contaminados e um deles morreu. Os 39 seminaristas que foram dar assistência nos postos de atendimento também foram infectados e internados, mas já se recuperaram e voltaram a trabalhar na linha de frente. A arquidiocese não tem hospitais próprios e recebe ajuda de instituições da Igreja na Amazônia, entre elas o hospital da diocese de Parintins, à margem do Amazonas, região de Santarém. Dom Leonardo disse, nesta entrevista ao Estadão, que Manaus enfrenta os piores números da pandemia no Brasil, mas tem um povo solidário na ajuda às vítimas da doença.

Dom Leonardo Ulrich Steiner, arcebispo de Manaus. Foto: CNBB/ Divulgação

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O senhor já conhecia a arquidiocese de Manaus por seus contatos como secretário geral da CNBB. Recebeu bem a nomeação de arcebispo, pois já havia manifestado ao Papa o desejo de servir na Amazônia. Qual foi a realidade que encontrou ao tomar posse em Manaus?

Serei sempre grato ao papa Francisco por ter-me enviado para a Amazônia. Conhecia a Arquidiocese por informações, faltava pisar o chão da cotidianidade. O tempo para ir ao encontro das comunidades, áreas missionárias, paróquias e pastorais foi pouco. Pude visitar duas áreas missionárias e encontrar-me com os padres, o conselho presbiteral e algumas pastorais. Um mês e meio depois de chegar, entramos no isolamento social. Agora são reuniões online, telefone, celebrações transmitidas pelos meios de comunicação, servindo os mais necessitados. Posso dizer que o acolhimento é umas características do povo amazonense. Você é o arcebispo, isso que importa. Percebo uma sensibilidade religiosa profunda. Há uma disponibilidade para o serviço junto ao povo da parte dos padres, diáconos permanentes e da vida religiosa. É um povo solidário que sabe partilhar. Pude perceber que existe pobreza nas periferias. Consegui visitar uma comunidade formada de indígenas e pude participar de uma reunião com a Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno. A receptividade das comunidades e a partilha é familiar. Em várias comunidades onde celebrei havia depois da celebração um café, algo para comer.

Quando o senhor chegou, estava começando o coronavírus. A cidade estava iniciando o combate à doença. Qual o quadro que encontrou, em organização e recursos? Quais foram as primeiras medidas que a Igreja tomou? Outras dioceses e prelazias pediram socorro, mandaram doentes para Manaus?

O tempo da pandemia acontece no tempo de gripe e viroses aqui. O Sistema Único de Saúde, SUS, não tem infraestrutura para uma emergência tão grande. Isso veio agravar a situação de Manaus com a pandemia. Há um descaso com o SUS; não se investiu no SUS. O recurso que encontramos é solidariedade do povo. Cancelamos a celebração pública dos sacramentos já no dia 23 de março. Nas celebrações, fomos informando as comunidades e famílias sobre a pandemia. O que podíamos oferecer estamos oferecendo. Com o isolamento social, iniciamos a Campanha Puxirum Manauara para recolher doações em alimentos e higiene e em dinheiro. Nossa preocupação é acompanhar as pessoas que vivem nas ruas de Manaus, os migrantes, os catadores, os indígenas, as famílias pobres. Hoje mesmo um dos padres que trabalha na periferia me escreveu dizendo: 'conseguimos atender 216 famílias'. É pouco, mas as mais necessitadas receberam algo para comer. O santo Padre nos enviou uma ajuda através da Nunciatura Apostólica, entidades de ajuda internacional também estão colaborando com nosso atendimento aos pobres. Temos trabalhado com o Ministério Público, o Ministério Público do Trabalho e a Secretaria da Prefeitura. É extraordinário a solidariedade!

A cidade de Manaus é habitada por mais da metade da população da Amazônia. Temos mais de 2 milhões de pessoas. A capital é a única cidade com recursos mais apropriados para doenças graves.

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Todos os municípios dependem de Manaus quando se trata de doenças graves. Infelizmente, o interior está ainda mais abandonado que a cidade de Manaus quanto à saúde pública. Manaus recebe de todo o Estado do Amazonas os doentes mais graves. Hoje temos uma população infectada pelo vírus maior no interior do que na capital. O vírus já chegou às aldeias indígenas.

A igreja ou as congregações religiosas tem hospitais e outros equipamentos de saúde em Manaus e seus arredores?

Infelizmente a igreja não dispõe de um hospital ou meios que possam oferecer um espaço onde os pobres sejam recebidos neste momento. Teria sido importante para podermos também neste aspecto estarmos presente durante a pandemia. Temos a pastoral da saúde que procura levar informações para os cuidados quanto à covid-19. A igreja tem um hospital em Parintins que é dirigido pela diocese.

Quantos padres e seminaristas tem a arquidiocese? O senhor recebeu reforços religiosos ou leigos?

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A presença dos leigos na arquidiocese é significativa, graças a Deus. A arquidiocese tem 32 seminaristas contando os que estão no propedêutico, filosofia, teologia, ano pastoral e um que aguarda a possibilidade de viajar para Moçambique como missionário. O seminário também acolhe os seminaristas das dioceses e prelazias que compõe o regional norte 1. Contamos com 45 diáconos permanentes exercendo o ministério. A arquidiocese conta com 55 padres entre os incardinados e os que foram enviados por outras dioceses tanto do Brasil quanto do exterior. Temos a presença de religiosos de 22 Ordens e Congregações, somando mais de 100 padres religiosos. Contamos com um bom número de consagrados atuando nas diversas áreas de evangelização, como também novas comunidades. Estou buscando ajudas, mas nesse tempo de pandemia o contato é mais difícil.

Quantos foram infectados, quantos tiveram de ser internados e quantos se recuperaram? Houve morte?

No momento temos um sacerdote hospitalizado. Tivemos quatro padres internados, dos quais um veio a óbito, Padre Cairo Gomes. Tinha 41 anos de idade. Não tenho a confirmação por análise laboratorial, mas tivemos pelo menos 14 padres que apresentaram os sintomas, foram medicados e estão bem. Os seminaristas, apesar do isolamento, manifestaram sinais da covid-19. Receberam a visita de dois médicos, foram medicados e no momento todos voltaram às atividades internas e ao estudo online.

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Qual é a situação dos indígenas quilombolas, ribeirinhos e outras populações mais desassistidas? Quantos infectados, quantos internados, quantos mortos?

A presença indígena é numerosa em Manaus e, nesse tempo de pandemia, não consegue atendimento médico como deveria. A Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno fez um levantamento da população indígenas na cidade de Manaus. Temos mais 30 mil de diferentes povos. A Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), com dados de organizações regionais, aponta 170 casos. Provavelmente, hoje, é maior que esse número. Isso acontece devido à dificuldade de acesso aos resultados dos testes da covid-19. São 29 povos indígenas atingidos pela pandemia até agora. Até quinta-feira passada, o número de óbitos entre os indígenas era 91. Não esquecer que quase 95% da população indígena vive na Amazônia. Já existia uma fragilidade pelo desmatamento, grilagem de terras indígenas, garimpo devastador. Houve pouca informação repassada às aldeias sobre a pandemia. Se para nós a morte de um ente querido é difícil, para eles é uma dor que demora a curar. Os quilombolas e ribeirinhos, como os indígenas, estão entre os mais desassistidos. Isso pela distância. Não houve a preocupação de fazer chegar as informações a essa população. Como os sintomas inicias são de uma gripe ou virose, as pessoas chegam tarde demais ao hospital. Os hospitais repletos com ambulâncias esperando para deixar o doente... No momento, a situação melhorou diante a diminuição de internamentos e a criação de hospitais de campanha.

Como é o seu diálogo com o governo? A igreja recebe ajuda? Os hospitais públicos e seus médicos e técnicos são acessíveis.

Os hospitais públicos estão defasados, para não dizer sucateados, para o atendimento. Profissionais de saúde têm reclamado que não podem trabalhar com segurança por falta de proteção adequada. Os profissionais de saúde são incansáveis. Alguns vieram a óbito pelo vírus. Foi muito difícil trabalhar num hospital onde os pacientes passam ao lado de mortos conforme mostrado pelos meios de comunicação. Temos rezado sempre nas nossas celebrações pelos profissionais de saúde, mas também por tantas pessoas que continuam a servir a sociedade nos serviços essenciais. No dia que passei no cemitério encomendando corpos, percebi quantas pessoas que a sociedade não vê e não dá valor, mas que estão ali a serviço: coveiros, pessoas da limpeza, guardas, administração. Quando num dia são enterrados mais de 50 corpos num mesmo cemitério o estresse toma conta de todos. Nesse tempo as pessoas que recolhem o lixo durante a noite sem estarem suficientemente protegidas... Admirável! Houve momentos de diálogo com pessoas do governo estadual e municipal. Muito para encaminhar questões da pandemia. No entanto, se a igreja pode oferecer uma contribuição mais decisiva na sociedade de Manaus e no Estado do Amazonas, o diálogo não pode ser truncado e só de momentos.

Como o senhor foi recebido pelos invasores de terras, pelos que expulsam os indígenas e os quilombolas e pelos derrubadores de matas?

Ainda não houve oportunidade de encontro. Não saberia dizer se há disponibilidade da parte deles para isso. 

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