Voluntários de testes da vacina russa trocam histórias e resultados de anticorpos

Participantes agem como pesquisadores amadores antes dos resultados oficiais dos dados completos da Fase 3 do imunizante

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Por Robyn Dixon
Atualização:

MOSCOU - Seus amigos e parentes os chamaram de "cobaias de laboratório" e avisaram que eles corriam risco de problemas de saúde terríveis com a entrada da Rússia na corrida das vacinas contra a covid-19.

Mas um grupo de russos, que participaram como voluntários em testes da Sputnik V da Rússia, surgiu como pesquisadores amadores antes dos resultados oficiais dos dados completos da Fase 3, ainda a meses de distância, embora as autoridades russas afirmassem na terça-feira que a vacina era 95% eficaz.

Voluntáriarecebe dose da vacina russa Sputnik V, em teste contra covid-19 Foto: Sergei Ilnitsky/EFE

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Eles criaram uma comunidade online - e, como integrantes de um grupo de ciência de nerds do ensino médio, estão fazendo suas próprias observações e análises.

Quase 1.500 pessoas trocam mensagens, respondem perguntas e compartilham resultados de anticorpos e outras atualizações de saúde em um grupo não oficial do Telegram que se autodenomina "voluntários da vacina em teste para covid-19".

É um dos ângulos mais peculiares na corrida global por uma vacina, com a Sputnik V entre outras fórmulas de laboratórios nos Estados Unidos, China e Europa.

O grupo online dá as boas-vindas aos recém-chegados, desesperados para participar do teste da vacina, enviando links para dos melhores lugares para serem aceitos rapidamente. E lamentam pelos participantes desapontados que parecem ter recebido as injeções de placebo do teste. Traçam gráficos de resultados e sintomas e incluem informações técnicas sobre anticorpos e células-T.

Alguns são especialistas, com experiência em bioquímica ou pesquisa de dados, mas a maioria é gente comum, assim como os novos casos da Rússia, atingindo registros diários de cerca de 24.000 por dia.

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O governo da Rússia não se pronunciou publicamente a respeito do grupo. Mas o teor da conversa deve parecer familiar. Assim como as autoridades russas, quase todas as postagens no grupo do Telegram acreditam que a Sputnik V é eficaz.

"O satélite, caramba, voa e faz barulho!" postou Dmitry Kulish, convencido do poder da vacina que leva o nome do primeiro satélite da Guerra Fria da Rússia.

Kulish, bioquímico e professor do Centro de Empreendedorismo e Inovação do Instituto de Ciência e Tecnologia Skolkovo, um instituto de pesquisa privado em Moscou, participou do teste porque era a única maneira de obter a vacina.

"Resumindo: eu tomei duas injeções e dois dias atrás, vi que meu nível de anticorpos está muito alto e estou muito feliz com isso", disse ele em uma entrevista.

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De acordo com o site investigativo russo Proyekt, pessoas da elite russa, incluindo magnatas e oficiais, fizeram fila para receber injeções da Sputnik V em segredo antes mesmo de ela ser registrada em agosto. Autoridades russas negaram que a elite russa tenha tido acesso privilegiado antecipadamente.

Muitos outros russos, no entanto, permanecem céticos em relação à vacinação da população em geral: 59% dos russos não tomariam as vacinas para a covid-19, de acordo com uma pesquisa de outubro do Levada Center. A pesquisa não reflete as razões do ceticismo. Mas, como na Europa, nos EUA e em outros lugares, o lobby antivacinas se consolidou na Rússia em alguns setores - assim como as teorias da conspiração sugerindo que a covid-19 não existe.

"Quanto à eficácia da vacina russa ou de qualquer outra vacina, acho que ninguém sabe. Só o tempo dirá", disse Alexander Samsonov, 39 anos, um dos voluntários do grupo Telegram que afirmou ter recebido um forte reforço de anticorpos de acordo o Liaisontest, da empresa italiana Diasorin, realizado em um centro de testes em Moscou.

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Samsonov pediu demissão de seu emprego de relações públicas no verão porque seu chefe insistia que os funcionários voltassem a trabalhar no escritório, onde poucos se preocupavam com medidas de proteção como máscaras e luvas.

Ele evitava a rotina habitual de concertos, passeios no parque, exposições e encontros em cafeterias com jornalistas. Ficou em casa mês após mês, constantemente de frente para o computador, trabalhando como freelancer.

"Eu estava estressado. Fiquei em casa o tempo todo", disse ele. "Você fica sentado o dia todo e engorda."

A vacina russa Sputnik V está em teste contra a covid-19 Foto: Natalia Kolesnikova/AFP

Samsonov decidiu participar do teste da vacina depois que sua avó, 92 anos, morreu de covid-19 e amigos contraíram o vírus.

"Eles me contaram coisas terríveis. Alguns desenvolveram diabetes. Outros, coágulos sanguíneos. E alguns tiveram problemas nos pulmões", disse ele.

Mas alguns colegas e amigos também zombaram das medidas de proteção de Samsonov, incluindo máscaras e luvas. Quando ele se ofereceu para ser voluntário, disseram que ele se arrependeria.

“Eles me disseram - porque a vacina não foi testada até o fim e porque a questão da vacinação é política - que eu teria problemas de saúde”, afirmou. "Eu nunca teria filhos e desenvolveria várias doenças por causa dessa vacina."

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Mas ele descreveu a vacina, mesmo ainda experimental, como uma ajuda para erguer seu estado de espírito, como uma cortina subindo em uma estreia. Ele encontrou um novo emprego como relações públicas.

"Sinto-me muito mais calmo. Sinto que posso sair do autoisolamento agora", disse ele. "Não posso viver isolado até o verão de 2021."

À medida que a competição global se aquece, a Rússia busca mercados na Ásia, América Latina, Oriente Médio, Ásia Central e África. O presidente Vladimir Putin incentiva a vacina em todas as conversas com qualquer líder mundial - enfrentando rivais que incluem a gigante sueco-britânica AstraZeneca, em aliança com a Universidade de Oxford, além daquelas produzidas pela Moderna epela Pfizer, com sede nos EUA, em colaboração com a BioNTech da Alemanha.

A Rússia afirma que a Sputnik V é 95% eficaz, semelhante aos resultados relatados pela Pfizer e BioNTech e Moderna.

A posição da Rússia - nas palavras do leal âncora da TV estatal Dmitry Kiselyov - é desprezar as vacinas do Ocidente como produtos caros e instáveis que devem ser mantidos em temperaturas muito baixas. A Sputnik V é liofilizada e pode ser armazenada e transportada mais facilmente. Kiselyov a comparou com um dos produtos de exportação mais famosos da União Soviética.

"A Sputnik V é como um fuzil AK-47, simples e confiável", disse ele no programa de televisão Vesti Nedeli no início deste mês. "Assim como qualquer produto congelado, a Pfizer provavelmente terá problemas logísticos."

Vladimir Rusetsky, 36 anos, e sua esposa Yelena, ambos especialistas em TI, criaram o grupo no Telegram para compartilhar informações e ficaram surpresos ao ver como ele cresceu rápido.

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Eles se deslocaram por mais de dois mil quilômetros de sua casa em Omsk para Moscou - duas vezes - para participar do teste e tomar as duas doses da vacina, pois estavam com medo de infectar seus pais.

"Quando você tem parentes mais velhos, é assustador", disse Rusetsky.

Os testes de anticorpos após a vacina mostraram que seus níveis estavam altos, afirmou.

Ele espera que o grupo convença os céticos, incluindo amigos e familiares, a considerar a possibilidade de se vacinar quando a Sputinik V estiver amplamente disponível no início do próximo ano.

"A filha da minha esposa, que mora nos EUA, nos chamou de cobaias de laboratório. Agora, ela vê que temos anticorpos e seu posicionamento mudou", disse Rusetsky. O casal ainda segue as regras em relação a máscaras e luvas, principalmente para servir de exemplo aos outros.

"É claro que tenho essa sensação de alívio", disse ele. "Agora sei que meus parentes estarão seguros. Não vou passar a doença pra eles e isso me acalma muito."

Max Popov, cidadão canadense que participa do grupo no Telegram e de um outro semelhante no Facebook, disse que não havia razão para temer a vacina da Rússia. Mas ele e sua esposa russa, Natalia Khristyukova, não apresentaram anticorpos após as injeções dos testes clínicos.

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"Com base nisso, descobri que minha esposa e eu estamos no grupo que recebeu a dose placebo, infelizmente", disse Popov, que fabrica e instala equipamentos de televisão na Rússia

Rusetsky tem certeza de que recebeu a vacina, não o placebo. Ele chamou isso de "mudança de vida".

“E se aquelas pessoas que não querem ser vacinadas olhassem para mim, mudassem de ideia e se vacinassem”, disse ele, “isso seria ótimo”. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

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