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Opinião|Zika: associação não é causa

Não é fácil provar que um vírus é a causa de uma doença. No caso do vírus zika ainda não foi demonstrado que ele causa a microcefalia, o que sabemos é que existe uma associação. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde usaram a palavra correta, mas não explicaram a diferença. O resultado é que a maioria da população acredita que o zika causa a microcefalia. E isso ainda não é uma verdade científica.

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Atualização:

O vírus zika, identificado no Brasil em maio deste ano, vem se espalhando rapidamente. Não se sabe o número de pessoas infectadas, mas ele já foi encontrado em 18 Estados. Em outubro em 2015, foi detectado um grande aumento no número de casos de microcefalia. A frequência dessa má-formação passou de 5,5 casos em cada 100 mil crianças nascidas vivas para 99,7 em 100 mil. Um aumento de quase 20 vezes.

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A disseminação do vírus zika, e o aumento dos casos de microcefalia, são fenômenos que estão acontecendo simultaneamente. Isso não quer dizer que um seja a causa do outro. Mas então, por que se acredita que existe uma associação entre esses fenômenos? São duas as razões. A primeira é que em três dos 1.248 casos de microcefalia foi detectada a presença do zika. A segunda razão é geográfica, tanto o surgimento do vírus quanto os casos de microcefalia aconteceram na mesma região do País. Foi por essas razões que a OMS afirmou, corretamente, que existe uma associação entre os eventos.

Sabemos muito pouco sobre essa associação. Não sabemos qual porcentual das crianças com microcefalia apresentam o vírus zika. Tampouco sabemos quantas dessas 1.248 crianças foram testadas e quantas deram negativo para o zika. Não sabemos qual porcentual de crianças geradas por mães infectadas pelo zika desenvolvem microcefalia. Parte desses números será conhecida nos próximos meses, e dependendo do que foi descoberto, isso pode fortalecer a associação ou demonstrar que ela é fraca ou mesmo espúria. Nessa altura do campeonato não é impossível imaginar que a causa do aumento da microcefalia seja outra. 

Esse vírus foi descoberto em 1947, na Floresta de Zika, em Uganda, em macacos. O primeiro caso descrito em humanos é de 1964. O vírus foi isolado de humanos em 1954, na Nigéria. E foi identificado fora da África em 2007. Apesar de já terem ocorrido diversas epidemias desse vírus, a infecção viral nunca havia sido associada à microcefalia. Além disso, a maioria dos infectados não apresenta sintomas.

Quanto à microcefalia, ela é muito bem conhecida e tem diversas causas. Cabe agora aos cientistas comprovarem se a associação entre zika e microcefalia é verdadeira, e se existe mesmo uma relação causal entre as duas doenças. Para isso há uma série de fatos que precisam ser apurados e condições que precisam ser cumpridas.

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Foi Robert Koch, em 1890, quem pela primeira vez listou as condições necessárias para demonstrar que um vírus ou bactéria é a causa de uma doença. Segundo ele, primeiro seria necessário demonstrar que grande parte das pessoas com a doença tem o patógeno no organismo. Segundo que esse patógeno possa ser isolado de pessoas doentes. Terceiro, seria necessário demonstrar que o patógeno isolado, quando injetado em pessoas saudáveis, provoca a doença. E, finalmente, que o mesmo patógeno pudesse ser isolado novamente das pessoas que contraíram a doença.

É claro que com seres humanos parte desses experimentos não pode ser executada (ninguém vai injetar o vírus zika em mulheres grávidas). Hoje, para se afirmar que um vírus causa uma doença os cientistas adotam os critérios de Bradford Hill (veja “Bradford Hill Criteria” na Wikipedia), publicados em 1965. Foram esses critérios que permitiram associar, depois de alguns anos, o HIV à aids. Ainda estamos longe de demonstrar a existência de uma relação causal entre o vírus zika e a microcefalia. Muita coisa pode mudar.

Mas isso não quer dizer que não devemos nos preocupar. A simples associação demonstrada nas últimas semanas é suficiente para acender todas as luzes vermelhas e justifica plenamente as medidas que vêm sendo tomadas pelo Ministério da Saúde. Por outro lado, não podemos esquecer que talvez a causa do aumento na incidência de microcefalia seja outra. E, nesse caso, se condenarmos o zika sem todas as provas, o verdadeiro culpado pode continuar solto fazendo estrago. A ciência precisa continuar a investigação e a população deve cobrar resultados.

MAIS INFORMAÇÕES: NEUROLOGICAL SYNDROME, CONGENITAL MALFORMATIONS, AND ZIKA VIRUS INFECTION. IMPLICATIONS FOR PUBLIC HEALTH IN THE AMERICAS. WORLD HEALTH ORGANIZATION, 1 DECEMBER 2015

FERNANDO REINACH É BIÓLOGO      

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