'Quando alguém pede comida, quem está cozinhando é uma pessoa da favela', diz fundador da Cufa

Pandemia de coronavírus afeta populações mais pobres, que vivem dilema ao precisar sair de casa para sobreviver

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Por Mariana Hallal e Paulo Favero
Atualização:

A Central Única das Favelas (Cufa), em parceria com Data Favela e Locomotiva Pesquisa & Estratégia, fez um estudo sobre o impacto da pandemia na economia das favelas. O documento mostra que aumentou a preocupação com a renda familiar e falta de emprego nesse momento que o coronavírus se espalha em grande velocidade nas regiões mais pobres do Brasil, e também revela que 37% das pessoas que tinham direito ao auxílio emergencial do governo ainda não conseguiram o benefício. Segundo Celso Athayde, fundador da Cufa, o cenário é de muita preocupação. Confira a entrevista exclusiva que ele deu e foi transmitida ao vivo no Facebook do Estadão.

Qual é a situação das favelas brasileiras nesse período de pandemia?

O número de pessoas infectadas tem aumentado e a gente sabia que isso iria acontecer. A tensão está aumentando e o medo tem ido junto. A gente está chegando em um momento de muita preocupação, mas temos visto que empresários estão se mobilizando bastante para dar uma resposta que o Estado não consegue dar.

Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas (Cufa) Foto: Estadão

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Que características uma favela tem que facilita o contágio do coronavírus?

Você tem uma situação de uma fratura, que todo mundo sabia que existia, mas que agora fica exposta. A favela sempre viveu isolada socialmente. Ela sempre aceitou ser apartada da sociedade porque sempre sonhou que algum dia a vida iria melhorar. A maior crise que a gente poderia ter nas favelas é de perspectiva, mas isso nunca aconteceu. Se não fossem essas empresas jogando as boias, por maiores que sejam as ondas, essas pessoas parariam de sonhar. Mais da metade das pessoas vive de maneira autônoma ou informal, ou seja, elas têm renda zero e nunca guardaram dinheiro porque consumiam tudo que produziam. Então não conseguem viver por 15 dias, pode ter idosos em casa, crianças.

Você já disse que esse é um momento que a 'desigualdade social dá um salto'. A pandemia escancara isso?

Quando alguém que faz home office e pede comida, quem está cozinhando é um favelado. Quem entrega é um favelado, o frentista que abastece o carro mora na favela, os prédios estão funcionando com muitos porteiros que moram nas favelas. Ou seja, a base da pirâmide está transitando por aí, seja o lixeiro, até mesmo nos hospitais. Porque a gente fala de médicos nos serviços essenciais, mas eles são só 30% de um hospital, pois ali tem vigia, faxineiro etc. Essas pessoas estão muito mais expostas ao vírus, transitam na cidade e a relação que elas têm com o vírus é de se acostumar ao medo. Quando voltam para casa, ainda estão em um espaço muito pequeno, num território que 26% das pessoas não tem água e que o saneamento básico é precário. Não podemos pensar somente nas grandes favelas, elas são diferentes entre si. Quando o vírus chega nesses espaços, ele encontra um ambiente que ajuda na proliferação.

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Um dos estudos de vocês sobre coronavírus nas favelas fala de Estados com maior proporção de pessoas morando em favelas, como Rio, Pará, Amazonas e Pernambuco. Curiosamente são Estados que estão com uma situação crítica no combate à pandemia. É coincidência isso?

Claro que não, era previsível que a epidemia iria explodir ali. Muitas pessoas precisam sair de casa para tentar conseguir o alimento. Quem está desempregado não vai ficar em casa, precisa ir para a rua buscar alternativa. A gente acha que na região Norte do País, onde as favelas têm uma vulnerabilidade maior e a assistência a essas pessoas é zero, o problema será enorme.

Vocês vão divulgar uma pesquisa que mostra o impacto econômico da pandemia nas favelas. O que constataram?

Estamos lançando uma pesquisa que mostra que 37% das pessoas, entre as que têm direito ao auxílio emergencial, não tiveram acesso a isso por várias razões. O que ratifica uma tragédia. O Estado precisa socorrer os mais vulneráveis. Morador de favela sempre produziu, a maior parte continua produzindo durante a pandemia, e contribuem na economia todo ano com R$ 119 bilhões, considerando apenas os 13,6 milhões de favelados segundo o IBGE (nós entendemos que são 37 milhões de pessoas nessa situação). O valor de R$ 600 dá para empurrar com a barriga porque não tem muita alternativa. É pouco, mas é o que se tem. O governo precisaria oferecer esse valor até o momento que as pessoas consigam reassumir seus postos de trabalho, mesmo que vá diminuindo o montante no final, com abertura progressiva do País.

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Qual seria a solução para lidar com a pandemia nas favelas?

Há pouco a se fazer quando o Estado diz para você ficar em casa, pois a vida é um bem maior. Então é preciso transferir renda. São pessoas que pagaram imposto a vida inteira. Então o Estado precisa acolher essas pessoas. Pode abrir o País, ignorar a doença e morre todo mundo, o que não é racional. Ou mantemos o isolamento social, dando valor à vida dessas pessoas e controlando os danos que esse ato vai ter na economia, o que todos os países estão fazendo. Pelo menos alguns empresários estão jogando a boia para esses quase afogados. Se isso não for feito, você não vai convencer nenhuma pessoa a morrer de sede do lado de uma caixa d'água apenas porque a caixa d'água não pertence a ela. Você não vai conseguir convencer uma pessoa a morrer de fome sem pegar nada de ninguém, porque isso é imoral. Existe o instinto de sobrevivência. A favela está dando prova de responsabilidade porque sequer escutamos falar em possibilidade de saque, nem entre os malucos de internet.

Favelas do Rio enfrentam situação delicada com o novo coronavírus Foto: Dado Galdieri/New York Times

Você acredita que as favelas pós-pandemia serão diferentes?

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Elas não são um corpo à parte da sociedade. Elas se comportam de forma muito passiva e sempre aceitaram que os direitos sociais estejam isolados. Para que a favela mude, é preciso que a sociedade mude. Obviamente não tenho a esperança de viver num país onde todo mundo será dono de um grande prédio. Terá o porteiro e terá o dono. Mas queremos viver em um país que todos tenham uma possibilidade mais real de mobilidade social, em que você não seja punido porque é filho de um porteiro. O dono do prédio precisa ter uma boca menor, para a gente ter uma sociedade mais justa.

E a relação do Estado brasileiro com os mais necessitados, também será diferente?

Eu tenho de torcer para isso e me enganar se for preciso. Que passemos essa pandemia não apenas jogando a boia para as pessoas, mas que a gente permita que essas pessoas subam no nosso iate, mesmo que fiquem no andar de baixo e continuem nos servindo no andar de cima. Temos de salvar essas pessoas e dar dignidade para elas. O que me move é continuar lutando para que esse equilíbrio social seja parte de uma realidade futura.

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